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quinta-feira, 5 de julho de 2018

A História Completa: Bono e René Castro


Se a história tivesse seguido seu curso, o U2 teria lançado em março de 1987 um álbum chamado 'The Two Americas'. O título 'The Joshua Tree' nunca teria existido. Mas não. O destino queria que a banda mudasse o título no último minuto depois de fascinados com as árvores que crescem com esse nome no deserto da Califórnia, onde chegaram para capturar as fotos que ilustram o álbum.
No entanto, o simbolismo do nome original foi mantido: As Duas Américas, aquela cultural e cosmopolita que perdurou por anos, e a outra, aquela imperialista e belicosa que se intrometeu nos problemas do planeta, especialmente na América Latina dos anos 70 e 80. Na verdade, é seu álbum mais "americano", mas também o mais latino, com o Chile como inspiração essencial.
Bono viajou para El Salvador com um chileno, onde conheceu a música de Víctor Jara, que acabou sendo citado no disco. O vocalista disse: "Eu estava com raiva. No Chile, um governo democrático havia sido derrubado por meio de um golpe apoiado pela CIA para impor uma máquina de matar chamada Pinochet. EUA desdenhava, se comportava de maneira vergonhosa para defender seus interesses".
O início da ligação entre o U2 e Chile têm uma data exata: 4 de Junho de 1986, antes do concerto que dariam aquela noite em São Francisco, como parte da turnê 'A Conspiracy Of Hope' da Anistia Internacional. Durante a manhã, Bono chegou ao Mission Cultural Center da cidade, uma instituição dedicada à arte latina impulsionado por exilados e foi dirigido por um pintor chileno e fotógrafo René Castro. O mesmo que pegou o irlandês e o levou para ver um dos murais que ele projetara em uma rua adjacente, e que refletia a perseguição e o exílio que naqueles anos atingiram o Chile e a Argentina.


Castro falou também de sua experiência mais íntima. Depois de estudar Licenciatura em Artes na Universidade do Chile, ele foi responsável pela gestão estudantil do MIR. Com esse papel, ele foi detido na tarde de 11 de setembro de 1973, apenas para ser preso e torturado no regimento Tacna e no Estádio Nacional.
Depois de dois anos, ele partiu para o exílio, onde se dedicou à fotografia, impressões de serigrafias e pintura. Certamente, o encontro com Castro foi a primeira vez que Bono conheceu a turbulência social que o Chile estava passando.
"Eu não os conhecia muito, mas ele ficou muito animado", diz Castro, que retornou ao Chile em 2004 e hoje mora em Concón. Então ele continua: "Ele estava muito interessado em tudo em que estávamos trabalhando. Eu dei a ele uma cópia de um livro de Martin Luther King e seu agente me deu duas credenciais para o show". O chileno chegou ao concerto com sua filha e, quase como retribuição, os representantes da banda os convidaram para comer e ofereceu à eles para se juntar à equipe. Eles viram naquilo precisamente a sensibilidade latina que procuravam naqueles dias.
Como uma primeira missão, e quase um mês depois que eles se encontraram, Bono convidou seu novo companheiro para uma viagem que iria realizar com sua esposa, Ali, em El Salvador e Nicarágua. Um tour por locais em conflito patrocinados pelo CAMP (Central Mission Partners), um grupo que ajudava as vítimas da guerra civil na América Central. "Lá nosso relacionamento se tornou mais próximo. Ouvimos muito Víctor Jara e Inti-Illimani", diz Castro. Essa jornada foi talvez a experiência mais decisiva para 'The Joshua Tree'.
Alan McPherson escreveu em seu livro 'The World and U2: One Band's Remaking of Global Activism': "Essa viagem o afetou muito, porque ele conheceu a pobreza e as guerras apoiadas por Reagan. Antes, o U2 não havia saído da América do Norte e da Europa. Mas em El Salvador, ele se reuniu com as mães de desaparecidos. Ele viu cidades bombardeadas. Ele assistiu enquanto eles jogavam cadáveres dos caminhões. E em tudo isso, Castro foi o homem que o guiou".
De fato, Bono se encontrou em San Salvador com o Comitê de Mães Monsenhor Romero (COMADRES), uma organização de mulheres cujos filhos foram mortos pelo governo. Daquele encontro, e de tudo que ouvira do Chile e da Argentina, escreveu "Mothers Of The Disappeared", a canção que fecha 'The Joshua Tree'. Bono diz: "As mães precisavam saber onde estavam seus filhos. No Chile, para semear o terror, aconteceu a mesma coisa com o mesmo apoio dos Estados Unidos. Essa música significa mais para mim do que qualquer outra no álbum".
Por outro lado, o vocalista e sua comitiva também enfrentaram um bombardeio aéreo enquanto estavam hospedados na casa de um camponês. Essa foi a experiência que inspirou "Bullet The Blue Sky", outra faixa do disco ... Um dos salvadorenhos que o acompanharam em parte dessa jornada foi Roberto Quezada, líder do grupo folclórico Yolocamba Ita e precisamente amigo de Castro, que entrou em contato com ele para o oficializar como anfitrião em seu país conturbado.
De El Salvador, Quezada diz: "René entrou em contato comigo, e conhecê-los foi muito importante. Bono até me convidou para ir a casa dele. Eu nunca tirei uma foto com ele e até hoje eles me dizem 'como é possível que você não tenha feito isso?', mas outras coisas eram mais importantes para mim".
Bono então deu um corpo definitivo para a canção "One Tree Hill", outra composição de sua maior obra, e que traz linhas dedicadas à Victor Jara.
O U2 finalmente lançou o álbum em 9 de março de 1987. No Chile, chegou em fita cassete e se tornou um dos mais vendidos da história da extinta loja de discos Fusión. Carlos Fonseca, dono da loja, lembra que as conexões chilenas passaram despercebidas pelo público, muito mais impactadas por outro tema de inspiração local que apareceu meses depois, "They Dance Alone", de Sting. Rodrigo Masferrer, fã da época com 15 anos (hoje parte dos sites u2chile.net e u2valencia.com), garante que as alusões políticas nunca foram detectadas por nenhum aparelho do governo.
Enquanto isso, René Castro permaneceu ligado ao grupo. Para a turnê The Joshua Tree , ele pintou um cenário que foi usado em cidades como Oakland. Mas seu grande golpe veio para a próxima turnê, Lovetown Tour, onde lhe ocorreu que os holofotes projetariam símbolos como uma cobra, uma cruz e o cifrão. Para os cartazes, ele desenhou uma lua atravessada por uma guitarra, em homenagem ao martelo comunista e foice. Os filhos do chanceler chileno assassinado, Orlando Letelier, ajudaram-no com isso. Além disso, quando chegava o momento de Bono cantar a linha em espanhol "el pueblo vencerá", Castro ditava a ele através de um fone de ouvido. Todas as vezes que o U2 foi ao Chile, mencionaram ele no palco ou se encontraram com ele.

Por Claudio Vergara (culto.latercera.com)
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