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domingo, 11 de maio de 2025

'Bono: Stories Of Surrender' : A Entrevista - Parte II


Sean O'Hagan - The Observer

Como o filme deixa claro, o falecido pai de Bono, Brendan "Bob" Hewson, era um homem para quem o incentivo paterno não era fácil. O relacionamento deles é intensamente evocado na tela em cenas em que Bono se senta a uma mesa no palco semi-escuro e revive as conversas constrangedoras, mas muitas vezes sombriamente humorísticas, que tiveram enquanto tomavam cerveja Guinness no pub Finnegan's em Dalkey. Era um ritual tenso de união, familiar aos irlandeses de uma certa geração. Em suas memórias, Bono escreve: "Nós nos encaramos. Conversamos perto um do outro. Ocasionalmente, conversamos um com o outro".
Quando desenvolveu o câncer que lhe tirou a vida em 2001, Bob Hewson finalmente, como Bono ironicamente coloca, "se sentiu confortável com seu filho sendo amado e odiado, que é o preço da popularidade na Irlanda".
Tendo escrito o livro e evocado seu pai no palco e na tela, ele está mais perto de entendê-lo?
"Só agora estou começando a perceber, depois de interpretar meu pai noite após noite no palco", diz ele, "que ele poderia ter sido muito mais simpático do que eu fui. E engraçado. E encantador. Teria sido fácil caricaturar ele, mas isso teria distorcido sua complexidade".
Em maio de 2023, assisti à apresentação final de Bono naquele espetáculo solo, no Teatro di San Carlo, em Nápoles, a casa de ópera mais antiga do mundo. Ao final do espetáculo, ele cantou uma das canções favoritas de seu falecido pai, "Torn A Surriento". Foi um movimento característico, ainda que arriscado considerando o cenário, mas o público italiano o absorveu, levantando-se aos gritos de: "Bravo, maestro!"
Parecia que havia uma lágrima em seus olhos no final...
"Sim", ele diz, "e estava tudo bem. É uma música triste para cantar, mesmo que você não esteja pensando no seu pai".
Ele faz uma pausa. "Em certo sentido, meu pai não poderia ter sido menos ambicioso, e às vezes pensei que talvez ele estivesse certo em priorizar a vida e os amigos em vez das ideias. Ele certamente priorizou a família".
Em relação à sua própria família, sua filha, Eve, é uma atriz de sucesso e seu filho, Elijah, lidera uma aclamada banda de rock, Inhaler. Como ele se sentiu quando Elijah seguiu seus passos?
"De certa forma, a última coisa que você quer que alguém que você ama faça é se expor", diz ele. "Para mim, isso sempre me trouxe muito julgamento e desconforto e, mesmo fingindo que não era nada – e até certo ponto é, doeu. Sou muito mais insensível agora, mas, quando eu era mais jovem, a armadura não estava bem colocada. É isso que eu não quero para os meus filhos. E, aliás, eles não sofrem com isso. Elijah está perto de entender quem ele é agora, mas, para mim, a arte sempre foi uma tentativa de me identificar".
Uma consequência de suas reflexões recentes, ao que parece, é que Bono se afastou recentemente do que parecia ser parte integrante do trabalho de sua vida – os esforços para mobilizar políticos ocidentais a lidar com a desigualdade global estrutural e prevenir mortes evitáveis na África Subsaariana.
No final de 2023, sem alarde, Bono deixou o conselho da ONE, a organização de campanhas que ele cofundou em 2004. Parecia um reconhecimento não apenas de sua idade, mas de uma decisão que ele havia tomado de redefinir suas próprias prioridades em relação à sua família e à sua banda.
Houve momentos em que ele reconheceu a contradição entre suas duas vocações. Quando conversei com ele em 2009, Bono reconheceu que sua campanha implacável havia causado atrito com os outros membros da banda: "Eles achavam que isso me distrairia. E, mais do que isso, eles simplesmente não estavam nem um pouco interessados".
Quando o lembro, ele concorda e diz: "É, eu poderia ter perdido a banda".
E, mesmo assim, ele continuou a conciliar dois empregos, ambos exaustivos. Quão difícil foi isso?
"Deixe-me colocar desta forma: não vou para o túmulo pensando que perdi meu tempo em termos de ativismo. No entanto, posso ir para o túmulo pensando que houve aquela música do U2 que eu deixei de lado, quando estava tão perto e eu saí pela porta dos fundos antes de terminar".
Ao longo de quatro décadas, a abordagem pragmática de Bono ao ativismo pelo oerdão da dívida africana e o fornecimento de medicamentos retrovirais para tratar o HIV/AIDS o fez ser justificadamente elogiado, mas também criticado, entre outras coisas, por ter um complexo de salvador branco, ser hipócrita sobre seus assuntos fiscais e se aproximar dos republicanos de direita e das elites mundiais, cuja vasta riqueza, argumentam seus críticos, continua sendo uma parte essencial do problema que ele está tentando resolver.
Contra isso, ele sempre insistiu que lida com "política real e realpolitik", na busca obstinada por resultados, em vez de expressar indignação.
Jamie Drummond, outro cofundador da ONE, descreve Bono para mim como "um factivista, um ativista baseado em evidências, que passou anos estudando esses assuntos em detalhes, o que também é útil quando se tenta convencer alguém a investir bilhões de dólares em um país onde talvez nunca tenha estado".
Em 2003, após pressão determinada de Bono, o então presidente dos EUA, George W. Bush, criou o Pepfar (Plano de Emergência do Presidente para o Combate à Aids), que pôs em prática o maior compromisso de qualquer nação na história para combater um único vírus. (Ele e Bush se tornaram amigos desde então).
Até o momento, sucessivos governos americanos destinaram mais de US$ 120 bilhões a essa causa, o que ajudou a salvar cerca de 26 milhões de vidas. Apesar das profundas reservas de esquerdistas como eu quanto à companhia que ele mantinha, os resultados – embora não tenham criado a mudança sistêmica que seus críticos insistem ser necessária – sem dúvida falam por si.
Sua abordagem, até agora, baseava-se no que ele frequentemente chama de sua única ideia útil: você não precisa concordar com as pessoas em tudo se a única coisa com a qual vocês concordam for importante o suficiente. Pergunto a ele se essa filosofia ainda é sustentável diante da ideologia brutal de "América em primeiro lugar" de Donald Trump.
"Acho que não", diz ele, cansado, "não consigo fazer isso. As organizações que ajudei a criar e sustentar não conseguem suportar a raiva que sinto pelo vandalismo, não apenas da USAID, mas das vidas das pessoas — das pessoas que trabalharam nisso e das pessoas cujas vidas dependiam disso".
Há um sentimento de profunda traição pessoal evidente em sua voz. "Acho que o que o governo está fazendo agora é tão míope e, francamente, estúpido. E há a alegria, a – ouso dizer – alegria dessas pessoas, enquanto desligam os sistemas de suporte de vida da parede sem aviso prévio. Isso significa uma hemorragia de vidas humanas. É difícil mensurar a enormidade disso agora".
Muitas das pessoas por trás desse vandalismo, como ele o chama, não são os mesmos republicanos e evangelistas cristãos com quem ele trabalhou anteriormente?
Ele admite que alguns deles são. "Tenho certeza de que, quando seus eleitores descobrirem, eles retirarão o apoio a este governo. Sejam milhões ou centenas de milhares de vidas em risco, como você pode justificar isso como cristão ou religioso?"
Considerando tudo isso, onde isso o deixa?
"Desempregado. Não acho que seja possível deixar de ser ativista, mas não tenho certeza se as conversas que aprecio entre pontos de vista opostos são aquelas que posso arbitrar neste momento. Mas há outras pessoas que podem assumir essa responsabilidade. Estamos em um território novo e é incrivelmente perturbador. Não reconheço o Partido Republicano [Grand Old Party]. Há algumas pessoas que conheço que imagino que ainda se importam e são gentis. E vale a pena refletir sobre a palavra gentileza. Em termos da evisceração da USAID e da Pepfar, crueldade não é a palavra para descrever – é assassina".
Ele fica em silêncio por um tempo. "Em nossas vidas, a sua e a minha, tínhamos a sensação de que o mundo estava evoluindo na direção da liberdade... mas, a questão é que não há respaldo histórico sólido para essa crença. Nossas vidas são um pequeno fragmento de tempo; o arco moral maior do universo não se curva em direção à justiça. Ele precisa se curvar em direção à justiça".
O que nos leva a Gaza. Em janeiro, Bono provocou uma onda de críticas online por aceitar uma medalha presidencial da liberdade de Joe Biden, que havia acabado de comprometer mais US$ 8 bilhões em armamento de alta tecnologia para Israel. Na Irlanda, onde o apoio à Palestina é tanto que Israel fechou sua embaixada em Dublin no final do ano passado, o U2, assim como muitas bandas de rock consagradas, tem sido regularmente criticado nas redes sociais por seu silêncio.
Certa vez, ele disse a famosa frase, lembro-lhe: "O lugar onde você mora não deve determinar se você vive". Certamente isso também se aplica a Gaza...
"Sim".
Será que ele ficou surpreso, então, com a indignação de tantas pessoas por ele ter recebido a medalha de Biden? Ele respira fundo. "Trabalhei com Joe Biden, e seus amigos e inimigos, por 25 anos, e ele lutou pelo cancelamento da dívida e apoiou nossas campanhas, que salvaram 26 milhões de vidas — então, é claro que eu ia receber a medalha. Eu também a estava aceitando em nome de todos os ativistas que dedicaram 25 anos de suas vidas a isso".
E quanto ao enorme número de vidas civis perdidas em Gaza e à atual suspensão da ajuda — talvez as pessoas pensem que ele deveria ser consistente em se manifestar?
"Acontece que eu me manifestei sobre Gaza no mesmo dia em que recebi a Medalha da Liberdade. Falei sobre o vazio de liberdade na vida do povo palestino no Irish Times e no Atlantic. Portanto, com todo o respeito, rejeito seu argumento central de que não me manifestei. Mas, também, acho tolice aceitar a noção de que os pronunciamentos públicos das pessoas são a soma de tudo. Busco resultados – do meu ativismo e, mais importante, para os ativistas que frequentemente estão na plateia do U2 e que trabalham mais arduamente se houver um objetivo claro à vista".
Na cerimônia da Medalha da Liberdade, ele me conta que estava sentado perto de José Andrés, fundador da organização beneficente de ajuda alimentar World Central Kitchen. "Este é alguém que perdeu sete de seus trabalhadores humanitários em Gaza, que foram retirados pelas Forças de Defesa de Israel (IDF). E ele está lá, se benzendo enquanto recebe sua medalha de Joe Biden. É por isso que minhas mãos estavam entrelaçadas daquele jeito, para ele. Eu estava seguindo sua bênção e é por isso que pareço um babaca tão piedoso".
Continuamos conversando por mais um tempo, até que seu assessor de imprensa chega para nos dizer que temos mais 15 minutos. Um tanto relutante, ele concorda em mudar a conversa para seu outro trabalho.
Comento a ele que o U2 anda muito nostálgico ultimamente, revisitando o álbum 'The Joshua Tree', de 1987, no palco em 2017 e o inovador 'Achtung Baby' para sua residência no Sphere, em Las Vegas, no ano passado.
Surpreendentemente, ele concorda. "Sim, estivemos envolvidos em alguma nostalgia. Mas eu diria que você precisa saber de onde veio para ser mais eficaz no presente e no futuro. Isso acontece de forma diferente com o livro, a peça e agora o filme. Tenho um registro de tudo isso, mas agora preciso voltar para o futuro, que é onde o U2 sempre viveu".
A banda, ao que parece, se reuniu recentemente em um estúdio próximo com o colaborador de longa data Brian Eno para preparar o terreno para o que será seu 16º álbum. "Estamos ocupados escrevendo mais uma razão para existir como banda", diz Bono. "Ainda acho Brian uma inspiração extraordinária e tenho certeza de que ele ainda me acha bastante frustrante. Mas sei que ele continuará defendendo nosso direito de sermos extasiados com nossa música".
É mais difícil fazer isso à medida que envelhecemos?
"Não em termos de música. Fica mais difícil, principalmente para os homens, manipular os egos uns dos outros".
Escrever o livro de memórias e adaptá-lo para o palco e a tela o fez pensar de forma diferente sobre seu papel na banda?
"Certamente levantou mais questões. No fim das contas, nossa arte é mais interessante do que nós, e acho que o desserviço que prestei à banda está nos distraindo de sua grandeza. Há algo que possuímos – uma impressão digital, um código genético – e sinto que não o servi o suficiente, que ele precisa de toda a minha atenção".
Antes de partir para uma reunião com a banda, ele me conta que um dos primeiros títulos de seu livro de memórias foi 'The Pilgrim and His Lack of Progress' "O Peregrino e Sua Falta de Progresso). Refletindo mais uma vez sobre a jornada solo que tem trilhado ultimamente, ele diz:
"Acho que fiz uma bela ópera de filme, e que não há problema em dar vazão a essas emoções desmedidas, se você fizer isso com um pouco de humor e humildade. Espero ter entendido o humor". Ele sorri. "A humildade está a caminho".
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