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quinta-feira, 29 de maio de 2025

Aquela bandeira branca parecia ridícula mesmo quando a levantamos pela primeira vez em "Sunday Bloody Sunday", na turnê de 'War'


Bono está acostumado a comandar o U2, em estádios lotados e a falar com lideranças mundiais sobre direitos humanos, como o combate ao HIV. Mas ele nunca tinha participado do Festival de Cannes. Por isso, recebeu dicas da sua filha Eve Hewson, que é atriz, na noite anterior às rodadas de entrevistas que fez para divulgar o filme 'Bono: Stories Of Surrender', exibido nas Sessões Especiais em Cannes e que estreia no Apple TV+.
O longa é baseado na autobiografia 'Surrender 40 Músicas, Uma História' e na turnê de shows de promoção do livro, 'Stories Of Surrender: An Evening of Words, Music and Some Mischief'.
"Ela me disse que eu tinha de vir com tudo, que eu precisava aparecer, ser grato, dar o meu melhor", afirmou. "Mas eu não sou ator. Sou essa pessoa que sobe no palco e usa seu desconforto ou qualquer outra coisa que esteja sentindo para conseguir cantar para as pessoas. Disse a Eve que não sabia se conseguiria".
Mas ele conseguiu. Conquistou os jornalistas na mesa-redonda e, na sessão de gala do filme, encantou a todos, puxando um coro de "Pride (In The Name Of Love)".
Em 'Bono: Stories Of Surrender', dirigido por Andrew Dominik, o cantor de 65 anos mescla canções repaginadas e ressignificadas com comentários e reencenações de passagens de sua vida, especialmente da relação com a mãe (que morreu quando ele era adolescente) e o pai, além de ser uma carta de amor à mulher, Ali, com quem começou a namorar ainda adolescente. O casal tem quatro filhos.

Por que decidiu escrever, falar e encenar sua vida na sua idade?

Em algum momento, se você vai desenvolver a armadura necessária para se tornar famoso, tem o dever de retirá-la e simplesmente dizer: "É isso que sou". Até mesmo a coisa de mudar o mundo é uma tentativa de impressionar meu pai. Todos nós somos feitos desses relacionamentos. Gostamos de pensar que somos carregados pelos livros que lemos, e somos, sejam eles textos sagrados, ou manifestos políticos. Mas, na verdade, por que você é cantor? Eu tenho que responder. Estou preenchendo esse vazio deixado pela minha mãe me abandonando. "Mas ela não te abandonou, ela apenas morreu". Quando você é criança, não vê dessa forma. E tem o pai. Quer dizer, é um clássico.

O que você descobriu sobre si mesmo que não esperava com o livro e o show?

Que, no fundo, sou uma pessoa muito superficial. O coração é enganoso acima de todas as coisas. O artista é particularmente enganoso. E é por isso que, nos créditos, temos a música "The Showman". Eu vou repetir uma frase do produtor Jimmy Iovine que gostaria que fosse minha: "Tenho baixa autoestima o suficiente para chegar onde quero ir". Acho que foi isso que descobri: que a insegurança é um motor para um artista.
Eu queria encontrar uma linguagem que fosse uma teoria de campo unificada para a fé, para a minha religiosidade. E eu brinco sobre isso, colocando o Messi em "Messiânico", porque não estamos interessados em estrelas do rock se elas não tiverem um pouco disso. Eu também queria encontrar uma linguagem onde eu pudesse, acima da religião, chegar a essa conversa onde eu acho que a arte vive, a música vive, a longevidade e os relacionamentos vivem. E então transformar tudo isso em uma canção de amor para minha mulher.

No filme você fala sobre esperança. Não sei se você tem esperança hoje em dia?

Essa é a pergunta certa. A acadêmica albanesa Lea Ypi disse que se você tiver a chance de ter esperança, é um dever. Porque a maioria das pessoas não tem. O filme chama-se 'Histórias De Rendição'. A palavra rendição soa absurda em um momento em que o planeta parece determinado a se auto imolar. Estamos mais perto da guerra mundial do que em qualquer outro momento da minha vida. E aqui estamos nós falando sobre não violência no tapete vermelho em Cannes, um lugar muito seguro para se estar. E aquela bandeira branca, eu sei que parece ridícula. Parecia ridícula mesmo quando a levantamos pela primeira vez em "Sunday Bloody Sunday", na turnê de 'War'. Quando a Irlanda estava perto da guerra civil, e nós simplesmente sabíamos ingenuamente, talvez instintivamente, que a não violência era o único caminho a seguir. E, claro, quem eu tenho no meu ouvido? John Lennon. Quem eu tenho no meu ouvido? Martin Luther King. Quem eu tenho no meu ouvido? Joan Baez. E a não violência foi de fato como a Irlanda alcançou a paz. É absurdo. Mas era ainda mais absurdo há dois anos.
Porque agora as pessoas estão começando a se perguntar isso. As pessoas na Ucrânia que estão lutando por suas vidas querem voltar à não violência. Há membros das Forças de Defesa de Israel (IDF) que não querem se defender do Hamas. Há pessoas que foram forçadas pelo Hamas a servir a esse extremismo religioso. Mas todos sabemos que a palavra islamismo significa rendição. Algumas pessoas dizem que significa submissão, mas eu acredito que não, rendição a Deus. Todas as grandes religiões, cristianismo, judaísmo, são sobre rendição.
Temos que superar a violência. Essa é a minha posição. Eu a defendi quando tinha 23 anos e fui ridicularizado. Tudo bem. Mas, como eu disse, John Lennon estava disposto a parecer ridículo pela paz. Não estou dizendo que a música do nosso U2 poderia chegar perto dos Beatles. Mas seguirei o exemplo dele.

No filme, você fala sobre como é difícil se render se você nasceu com os punhos erguidos, acho que é o que você diz sobre si mesmo. Onde estão esses punhos hoje em dia? Você ainda tem esse lado?

Infelizmente, o inimigo não desaparece. E você começa a perceber que o maior oponente que vai encontrar será a sua própria hipocrisia. Na minha vida, não estou mais lidando com paramilitares. Mas ainda estou enfrentando isso. No livro, eu conto como escrevi, aos 22 anos: "Não posso mudar o mundo, mas posso mudar o mundo em mim". E agora, mais velho, escrevi: "Talvez eu possa mudar o mundo, mas não posso mudar o mundo em mim". Essa é a humilhação desta escrita. Você percebe que passa por tudo isso, chega aos 65 anos e ainda está sobrecarregado com o seu próprio... seja lá o que for. O ego fica com má fama. Precisamos de um pouco de ego. Mas não é tão simples quanto ego.

O filme e o livro falam principalmente sobre o seu pai. Você é um pai totalmente diferente para os seus filhos?

Espero que sim. Eu disse aos quatro filhos, quando cada um chegou à adolescência: "Agora vocês devem brigar comigo. Não nos falamos por um tempo, ou resmungamos um para o outro. Passamos um pelo outro. Mesmo as meninas, vocês ficarão magoadas por eu não entender vocês e eu realmente não vou entender. E aí, quando vocês tiverem 20 anos e talvez quando tiverem seus próprios filhos, aí sim, voltaremos a ficar juntos. Esse é o caminho normal. Esse foi o meu caminho, que presenciei na nossa vizinhança enquanto crescia. Ou poderíamos simplesmente pular isso". Os quatro disseram: "Vamos pular isso". E tem sido verdade até agora, até este filme.

Achou desafiador fazer esse tipo de performance que vemos no filme? É um pouco diferente de fazer shows de rock. Mas, além disso, o que você aprendeu com essa turnê e com esse filme?

Ficando um pouco famoso, invariavelmente você se torna uma caricatura. A fama gosta de caricaturas. Gostamos de personagens desenhados rapidamente, super-heróis.
Este é um filme de super-heróis. Mas eu queria um pouco de sombreamentos para resgatar minha identidade da minha família, dos meus amigos, até mesmo dos fãs. As pessoas sempre dizem: "Por que você não conta piadas no palco?". Mas um show do U2 não é lugar para piadas. Mas sentado no lounge Sorrento, no pub da minha infância, eu pude simplesmente ser eu mesmo. Foi uma libertação.
Em um nível mais sério, eu pude ser mais verdadeiro como artista. Andrew Dominik me empurrou. Ele dizia: "Não acredito em você" na cena em que me despeço do meu pai. Tive que me despedir do meu pai cinco vezes.

Seu comprometimento político prejudicou sua carreira?

Ah, sim, mas tudo bem. Esse é o trabalho. Eu forcei a banda e forcei nosso público ao limite. Mas astros do rock são bons em pose. Minha postura tem sido uma das menos descoladas. Ser visto com George W. Bush quando ele estava prestes a invadir o Iraque não foi uma boa imagem para mim e para nossa banda, e nos custou caro. Mas eu direi que também não foi uma boa imagem para ele com seu público. Só que juntos estávamos trabalhando no que acabou sendo a maior intervenção em saúde da história da medicina na época. Chama-se PEPFAR e combate o HIV/AIDS. Me contive e não o critiquei em público porque ele estava prestes a salvar, como se viu, 26 milhões de vidas até hoje. E esse imperador apareceu e cortou esses sistemas de suporte de vida. Não foi apenas um aviso de que a América não estará aqui se você não votar e morar longe, mas, na verdade, eles terminaram com os apoios com alegria. Um sul-africano branco e rico agora é o responsável pelos sul-africanos mais pobres e negros não receberem seus medicamentos antirretrovirais. Isso é uma espécie de retorno do apartheid, eu diria.
Embora o que eu prefira dizer seja, quando se trata do viajante espacial: 70% do mundo está livre do HIV/Aids desde o pico de 2004. Imaginemos que sejam cerca de 2,5 milhões de mortes por ano. Caiu para cerca de 600 agora. Então, você tem 70% de erradicação deste vírus que causou tanta infelicidade. É um pouco como chegar a Marte, dar uma olhada e dizer: "Vamos voltar". É tão idiota. Não consigo acreditar que, tendo conhecido Elon Musk, ele seria tão insensível. Não acredito que ele esteja pensando direito. E creio que as pessoas ao seu redor, que são especialistas em saúde global, precisam explicar o que isso vai causar.

Você acha que as pessoas vão ouvir suas músicas de forma diferente depois de ver o filme?

É por isso que fizemos o filme. Quando você ouve essas músicas, elas se tornam músicas novas. Nós as escolhemos porque são conhecidas, mas também porque precisávamos contar uma parte específica da história, como o absurdo da bandeira branca, a questão sectária com "Sunday Bloody Sunday", depois a África com "Where The Streets Have No Name". E tínhamos muitas músicas que poderíamos ter escolhido, mas é por isso que desmontamos ou descobrimos outras músicas dentro delas. Acho difícil olhar meu cabeção na tela. Mas cantei muito em "Sunday Bloody Sunday". Não sei o que aconteceu naquele momento. Isso soará desrespeitoso com a mais intocável das cantoras, mas eu me senti como Nina Simone. Senti a influência dela em "Sunday Bloody Sunday". Encontrei esses outros personagens e fiquei feliz, além de me reencontrar. O U2 voltará ao punk rock e ao rock and roll, é claro. Mas essa intimidade parecia, de certa forma, mais desafiadora, mais reveladora.
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