Bono vai à luta contra a AIDS
04/12/2003 - Paris Match
O vocalista do U2 esteve na Cidade do Cabo com outras estrelas para o show sobre o Dia Mundial de Luta Contra a AIDS, patrocinado por Nelson Mandela. Ele quer fazer com que a face dos ocidentais enfrente sua própria consciência culpada. Em uma entrevista exclusiva, Bono, um dos astros do rock mais reservados, concordou em receber repórteres da Paris Match em seu quarto no Cape Town Sheraton. De nosso correspondente especial na Cidade do Cabo, Dany Jucaud.
O que chama a atenção em Bono é o seu olhar. Ele enxerga através das pessoas. Generoso e sensível, o que ele mostra é o que ele é: ele não trapaceia. Ele é uma boa pessoa, um produto raro nesta profissão. As únicas pessoas em torno dele são gente de qualidade. E enquanto ele poderia esnobar a todos com sua celebridade – ele tem meios para isso, no final das contas ele é o maior astro do rock mundial – em vez disso, ele escolheu ser a voz daqueles que não têm voz nem vez.
Paris Match: Durante o show eu estava observando você, dos bastidores. Essas milhares de pessoas que o aplaudem, que gritam seu nome assim que você aparece no palco, isso ainda te afeta?
Bono. Se você precisa de 35.000 pessoas toda as noites te dizendo que te amam pra se sentir normal, então você tem um sério problema. Os maiores artistas são as pessoas mais problemáticas e hipersensitivas do mundo. Está escrito em nosso DNA. Eu tenho a sensibilidade de um réptil. Agora mesmo, enquanto estou falando com você, eu sinto todas as vibrações possíveis, mesmo as mais ínfimas, neste quarto. Eu estou sempre extremamente consciente do que está acontecendo ao meu redor, como se, de repente, um perigo repentino pudesse romper a porta.
Paris Match: Você chama isso de sensibilidade; eu chamaria de paranóia.
Bono. Okay, sou paranóico. Eu estou sempre alerta, pronto para apanhar ou, quem sabe, para ganhar um beijo [ risos ]
Paris Match: Ontem, quando Nelson Mandela fez seu discurso no pátio da prisão de Robben Island, onde ficou preso por 27 anos, você foi único dentre todos os artistas que ficou com lágrimas nos olhos.
Bono: Eu nunca tive vergonha de demonstrar minhas emoções. Eu me emociono muito fácilmente. Eu estava atordoado, ao me encontar naquele pátio de prisão. Este homem me fascina. Apesar de seu humor, a maneira sempre elegante com que ele se porta, eu acho que ele não pode esquecer, nem por um segundo, que 27 anos de sua vida lhe foram roubados. Mandela, como Kofi Annan, é um daqueles homem que têm uma certa graça. A pessoa que mais me afetou foi o Arcebisbo Desmond Tutu. A palavra de Deus habita nele. Tutu sorri muito, o que para mim é a evidência real da liberdade.
Paris Match: Você é alguém de uma bondade inacreditável, atencioso com todos, sempre disponível. Sendo o maior astro de rock do mundo, você parece anormalmente normal pra mim!
Bono: Eu estou constantemente lutando contra meu egoismo. Artistas são pessoas fundamentalmente egoistas, e eu não sou exceção a essa regra. Em nossa profissão, você fica obcecado consigo mesmo, muito rápido. A celebridade é ridícula, mas eu reconheço que é uma boa moeda de troca. Eu fico feliz por usar a minha por boas razões. Digamos que, com o tempo, eu desenvolvi boas maneiras de controlar a raiva dentro de mim.
Paris Match: É a raiva que faz você fazer o que faz?
Bono: Eu tenho muita raiva dentro de mim. Quando eu era jovem, essa raiva podia se transformar em violência rápidamente. Ainda me acontece, às vezes - eu perco o controle - e isso me custa uma fortuna, posso dizer. Eu tenho recebido muita tolerância, mas não force muito a barra [ cai na risada ]
Paris Match: Você é também o maior advogado da causa da África, e você poderia se contentar em dar dinheiro, assinar uma petição. Por que você se atirou nessa luta dessa forma?
Bono: Eu não suporto injustiça. Existe uma emergência no mundo. É completamente inaceitável que na Europa e na América nós tenhamos medicamentos que não custam quase nada, e há centenas de milhares de crianças e pais que morrem cada dia porque nós não compartilhamos esses remédios. Isso diz muito sobre a natureza humana. É obsceno... A história vai nos julgar duramente, assim como a nossos filhos, e Deus muito mais ainda. Nós estamos assistindo um novo holocausto e sequer nos movemos. Um continente está em chamas e estamos parados do lado da estrada, como idiotas, com um copo dágua em nossas mãos para apagar o fogo. Um congressista americano, que esteve preso em Auschwitz, me disse recentemente que, nos pesadelos que teve mais tarde, o que ele viu não foi o tempo que ele passou no campo de concentração, mas os rostos das pessoas que viam os judeus partirem sem dizer nada, sem sequer tentar descobrir para onde eles estavam sendo levados. Você e eu, nós sabemos para onde essas crianças estão indo. Para lugar algum. Elas vão morrer, apenas. Eu vou levar minhas filhas, Jordan (14) e Eve (12), para a África logo. Meus filhos, que têm 4 e 2 anos, são ainda muito pequenos. Mas eu quero moldá-los, delicadamente, para que estejam conscientes sobre o que acontece no mundo. Por enquanto, eu quero que minhas filhas vejam como e onde o Diabo tem feito seu melhor trabalho. Como meu amigo Bob Geldof diz, a AIDS é um problema médico, mas essa gente está morrendo por causa de um problema político.
Paris Match: Você recorda o momento exato em que disse: eu tenho que fazer alguma coisa?
Bono. Em 1985 o U2 participou do Live Aid, que arrecadou 200 milhões de dólares para os famintos da Etiópia. Eu pensei que era algo extraordinário, até que me explicaram que o terceiro mundo gastava aquela quantia todos os meses, em pagamentos de dívidas para com os países ricos. Eu fiquei chocado. Depois do Live Aid, eu passei um mês com minha mulher, trabalhando em campos de refugiados na Etiópia.. Eu vi com meus próprios olhos pela primeira vez a devastação da fome e eu nunca superei isso.. Eu prometi a mim mesmo que um dia eu acharia um jeito de fazer alguma coisa. Eu não sou um hippie, ao contrário do que as pessoas pensam; eu venho das ruas. Quando eu ponho uma idéia na cabeça, eu não a deixo escapar até que eu resolva a coisa.. Como dizemos no rock´n´roll, “eu fecho o negócio”.
Paris Match: Você não tem dúvidas?
Bono: Sim! Eu duvido de mim mesmo o tempo todo! Mas eu nunca duvido do que eu quero fazer. Nós tínhamos 15 anos quando começamos nossa banda, lá do meio do nada, ao norte de Dublin. Quando eu dizia que “um dia nós seremos tão grandes quanto os Beatles ou o The Who”, todos riam da minha cara. Minha imaginação não tem limites. Quando eu tive a idéia de que nós não poderíamos começar o novo século sem conseguir o cancelamento da dívida do terceiro mundo, eu simplesmente não via o que supostamente havia de tão extraordinário nisso.
Paris Match: Ou você é maluco, ou leviano, ou talvez os dois. Ao que lhe consta, nada é impossível?
Bono. Nada! Mas ao mesmo tempo eu sou um verdadeiro pragmático. Por sorte, eu vejo menos obstáculos do que a maioria das pessoas vêem. Isso deve vir da minha personalidade míope. Se eu pensasse sobre os problemas que eu terei que enfrentar no futuro, eu ficaria paralizado. É a minha inocência que me salva. Há um tempo atrás, em uma exposição, aconteceu por acaso de eu encontrar uma foto minha, de quando eu estava apenas começando. Eu fiquei impressionado com a expressão em meu rosto: eu estava aberto, totalmente confiante.
Paris Match: O que você diria para aquele jovem agora?
Bono: Eu diria que ele estava certo. Eu recuso desconfiança. Há algo muito poderoso na inocência. Até certo ponto, como todo mundo, eu queria me livrar daquela inocência, então tentei todas as experiências possíveis. Levou um longo tempo pra que eu reconhecesse que, de fato, era lá que estava o meu poder.
Paris Match: Desde líderes até economistas famosos, você fez amigos entre os as pessoas mais importantes do mundo. Já aconteceu de você estar cara a cara com um deles e pensar: “O que é que eu estou fazendo aqui? Eu não sirvo pra isso.”
Bono: Eu não visito essas pessoas em meu nome, eu represento apenas a voz daqueles sem voz nem vez. Eu vou pra cama toda a noite com relatórios do Banco Mundial. Acredite, eu conheço o assunto. Nenhum presidente, francês ou americano, jamais me intimidou. Ao contrário, eles é que deveriam ficar intimidados [ risos, depois fica sério ]. São as pessoas no poder que, um dia, vão ter que prestar contas. Eu posso ler nos olhos deles, alguns deles, da primeira vez que eles me vêem. “Quem é esse tipo esquisito, de onde ele vem?" Ser um animal exótico é uma vantagem; eles te deixam chegar perto - até que se arrependem. A coisa mais importante está em olhá-los nos olhos, diretamente.
Paris Match: Você não fala apenas pela Irlanda ou África, mas em nome da humanidade. Nuinca te passou pela cabeça que, para a maioria dos políticos, sua própria sobrevivência política é mais importante do que a sobrevivência da humanidade?
Bono: Com certeza, eu sei disso. O tempo todo. È por essa razão que os políticos mostram suas idéias com muito mais paixão em particular. Mas isso não me faz desistir.
Paris Match: Artistas são mais poderosos do que presidentes hoje em dia. Será que eles serão os próximos políticos?
Bono: A arte e a política andam juntas na Irlanda, um país que tem sido governado por poetas, doidos e alcoolistas. Eu sou um homem livre e planejo permanecer assim, porque eu quero poder dizer o que gosto.
Paris Match: No encontro do G8 em Evian, Jacques Chirac anunciou que os franceses triplicariam sua contribuição ao Fundo Global. Ele manteve suas promessas?
Bono. Eu acho que ele as manterá. Eu acredito que ele é um homem muito teimoso, difícil de fazê-lo se movimentar se ele não quiser fazer algo. Mas eu tive a sensação de que ele estava sinceramente preocupado com a questão da AIDS na África. Ele o fará, nem que seja pela sua herança política.
Paris Match: Tudo já foi dito e escrito sobre o AIDS. Como você ainda pode encontrar palavras tão persuasivas?
Bono. O argumento mais poderoso é dizer “O que vai acontecer se você não ajudar a toda essa gente? Como é que você vai viver com isso? O que vai acontecer quando a terça parte do mundo desdenhar você? A possibilidade de fornecer medicamentos para a AIDS pode fazer muito por nós, polìticamente. Nós podemos mudar a opinião que essas pessoas têm sobre nós. Pense nisso”
Paris Match: Você tem fé. Como você sabe que Deus existe?
Bono: A Bíblia é minha leitura de cabeceira. Dito isso, eu sempre pensei que o importante não é saber se eu acredito em Deus, mas saber se Deus acredita em mim. Eu levo minhas crianças à missa, mas quando fica muito chato, eu fico sem jeito, porque eu não quero que elas pensem que dormir na igreja é uma coisa normal. Um dia, um dos padres falou sobre futebol em seu sermão e eu vi estrelas nos olhos delas.
Paris Match: Todos sabem quem você é, mas bem lá no fundo, as pessoas sabem muito pouco sobre você. O que eles teriam que aprender sobre você que os surpreenderia?
Bono. Só as pessoas que conhecem bem minha música realmente sabem quem eu sou. Eu digo tudo em minhas canções. Eu sou bem conhecido, mas não sou uma celebridade e eu não tenho investido em me tornar uma celebridade, de jeito nenhum. Os paparazzi não se interessam por mim porque minha vida é completamente banal.
Paris Match: De onde vem o rosário que você usa no pescoço?
Bono. O Papa me deu em minha última visita. Como uma troca, eu dei a ele os meus óculos de sol.
agradecimento: Maria Teresa (Forum Ultraviolet)