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terça-feira, 6 de julho de 2010

Um pregador chamado Bono - Arquivo 'Bono 50 Anos'

À frente do grupo U2, o irlandês Bono dá as cartas no cenário do rock atual. Mas não só: com sua militância, ele mantém viva a idéia de que a música jovem pode ajudar a melhorar o mundo

Revista Veja - Edição 1884 - 15 de dezembro de 2004

O cantor irlandês Bono foi uma figura ausente nas gravações do 11º disco do U2, How to Dismantle an Atomic Bomb. O guitarrista The Edge, o baixista Adam Clayton e o baterista Larry Mullen Jr. tiveram de criar sozinhos as bases das novas canções da banda de rock mais bem-sucedida da atualidade. O U2 é uma potência que vendeu mais de 100 milhões de discos em 24 anos de carreira e lucrou 110 milhões de dólares apenas em sua última turnê. Outros gigantes do pop, como a americana Madonna e os ingleses do Rolling Stones, têm vendagens respeitáveis, mas distantes das que tinham no auge de sua trajetória. A banda irlandesa, ao contrário, continua em rota de ascensão. Lançado há quinze dias, seu novo trabalho já atingiu a marca de 7 milhões de cópias comercializadas – o que faz dele o disco mais vendido no mundo no momento. No Brasil, o álbum saiu com tiragem inicial de 180.000 cópias, coisa que só ocorre com os campeões de vendas no país, como Ivete Sangalo e Zeca Pagodinho. Apesar de ser o líder dessa máquina, Bono anda ocupadíssimo com outra prioridade: sua cruzada humanitária para ajudar os países pobres da África a superar problemas como a aids e o endividamento externo.
O cantor encarna como ninguém a figura do roqueiro engajado. Mas com uma diferença em relação aos demais expoentes da categoria: ele tem cacife para se fazer ouvir pelos líderes mundiais. Em suas peregrinações, já foi recebido pelo presidente americano George W. Bush, pelo primeiro-ministro inglês Tony Blair e pelo papa João Paulo II, entre outros. Como sua agenda também é preenchida com as reuniões intermináveis à frente da organização não-governamental que fundou para dar apoio às suas causas, sobrou pouco tempo para se dedicar ao novo trabalho. Muitas letras, conta ele, foram rascunhadas em guardanapos e saquinhos de vômito de avião – não por acaso, de uma companhia do Terceiro Mundo, a Air India. Os resultados da militância de Bono provam que o bordão "o rock pode mudar o mundo" continua mais vivo que nunca. "Mesmo que os artistas não tenham poder político, milhões de pessoas são tocadas por suas músicas", disse Bono em entrevista exclusiva a VEJA, realizada na semana passada no estúdio do U2 em Dublin, a capital da Irlanda.
Não faltam exemplos do poder de mobilização da música pop. Os artistas não pararam mais de abraçar causas desde o Concerto para Bangladesh, que reuniu no começo dos anos 70 os maiores roqueiros da época, num show em Nova York. Nos anos 80, a fome na Etiópia elevou esse tipo de evento a um novo patamar. Na Inglaterra, um time de artistas coordenado pelo irlandês Bob Geldof formou o Band Aid, que chegou ao topo das paradas com um hit natalino. Em seguida, os americanos repetiram a fórmula – para quem viveu o período, é impossível não lembrar de We Are the World, a música em questão. Em 1985, o U2 participou do megaconcerto que foi um desdobramento natural dessas iniciativas, o Live Aid. O show marcou o estouro mundial da banda – e lançou Bono como o porta-voz dos chamados excluídos.
Apesar de as intenções declaradas serem nobres, o engajamento dos roqueiros é encarado com reticências por uma parcela dos fãs. Uma das razões é que nem sempre o dinheiro arrecadado com a filantropia foi parar onde deveria. O pioneiro Concerto para Bangladesh é emblemático. Do ponto de vista de arrecadação, ele foi um sucesso que gerou 9 milhões de dólares e deu origem a um disco e a um filme. Tempos depois de sua realização, descobriu-se que o dinheiro havia sumido. Outro motivo de desconfiança é que parte das celebridades mal consegue disfarçar a pouca sinceridade de seu engajamento. É quase sempre uma forma de autopromoção – e tome gente beijando a mão do líder tibetano Dalai-Lama e se convertendo em embaixador dos miseráveis.
Dois tipos de engajados, sobretudo, estão sujeitos a cair em descrédito. Há os que ficam marcados com uma imagem antipática por se enfronhar na política partidária. Na última campanha presidencial americana, a fina flor da classe artística liberal, de Bruce Springsteen a Michael Stipe, do grupo R.E.M., usou seu prestígio em favor do candidato democrata John Kerry. Sua presença no palanque surtiu o efeito contrário do esperado pelos apoiadores. Muitos eleitores os viram como uma elite arrogante que tentava ensinar o povão a votar. O outro tipo de celebridade engajada que se desgasta com facilidade são as vítimas da "síndrome da santidade". São aqueles que exibem a aura de guardiões do bem e acabam tachados de "malas-sem-alça". Aí se incluem o roqueiro Sting, com sua militância ecochata, e a cantora Sinéad O'Connor, que atirou para tantos lados que acabou falando sozinha.
Num terreno em que as credenciais se queimam tão facilmente, Bono é uma exceção. Já no surgimento do U2, há 24 anos, ele era um militante pacifista do tipo que se levava a sério. A banda flertou com uma música menos politizada em vários momentos, é verdade, mas o vocalista não deixou de fazer discurso em seus shows. Mesmo que a um milímetro de cair na chateação, o vigor da música e das letras do U2 nunca foi posto em questão. Uma das formas que Bono encontrou para manter intacta sua reputação de roqueiro é encarar com boa dose de ironia o fato de ser um popstar. "Sim, eu sou Deus", brincou ele na entrevista a VEJA.

Esse jeito irreverente dá lugar a um sujeito carola na vida doméstica. Casado há 22 anos com Ali Stewart, sua namorada de adolescência, o cantor é pai de quatro filhos: Jordan, Eve, Elijah e John – os nomes inspirados no Evangelho são uma amostra de sua religiosidade católica. O casal educa a prole à moda antiga, o que inclui não falar palavrões em família. Bono e Ali descobriram juntos o gosto pelas cruzadas humanitárias. Logo depois do Live Aid, enquanto boa parte dos participantes já mal se lembrava de que a Etiópia existia, Bono e a mulher foram conhecer o país africano – e passaram seis meses por lá. Ali, por sua vez, se tornaria uma advogada de outra causa: a ajuda às vítimas do acidente nuclear de Chernobyl.
A primeira grande vitória de Bono em sua cruzada pelo perdão da dívida externa dos países do Terceiro Mundo se deu em 1999. À frente de um grupo de ativistas, ele obteve do G-8, que reúne os sete países industrializados mais a Rússia, a promessa de perdoar bilhões de dólares em débitos das nações pobres. Bono criou a fundação Data para ampliar suas ambições humanitárias: além de brigar pelo perdão da dívida, a entidade atua na luta contra a aids na África e por mais justiça no comércio internacional. Não é apenas a estampa de roqueiro famoso que faz dele uma figura influente. Seus interlocutores elogiam seu conhecimento dos temas em jogo. "A princípio me recusei a recebê-lo, pois achei que era apenas um popstar querendo aparecer à minha custa. Mas descobri que Bono é uma pessoa séria, que domina profundamente suas causas", já declarou Paul O'Neill, ex-secretário do Tesouro americano. Bono soube cercar-se de especialistas e montou uma estrutura profissional para cuidar de seus projetos humanitários.

Apesar do tempo cada vez mais escasso para se dedicar ao rock, Bono mostra estar em plena forma como vocalista. How to Dismantle an Atomic Bomb é um disco inspirado. Ele marca a volta do conjunto às baladas e ao rock básico de seu início de carreira. Em suas letras, Bono fala menos de militância e mais de suas emoções, que refletem a morte do pai, ocorrida em 2001. Ouvido por VEJA na mesma ocasião da entrevista com o cantor, o baterista Larry Mullen tem seu palpite a esse respeito: "Quanto mais tempo Bono passa longe do grupo para se dedicar à militância, maior é sua inspiração".


O ROCK PODE MUDAR O MUNDO?
Mesmo que não tenha poderes políticos, o roqueiro entra no pequeno mundo que existe na cabeça de seus fãs e pode incentivá-los a sair de casa e mudar o que está errado ao seu redor. As pessoas precisam acreditar que podem mudar o mundo. Se deixarem de ter fé nisso, não restará nada além da alienação.

O SENHOR PODERIA CITAR ALGUNS FEITOS DO ROCK?
Não fosse pelo rock, eu não teria a crença de que posso melhorar o planeta em que vivo, e jamais teria chegado aonde cheguei. Ele tem sido a trilha sonora das grandes mudanças, da queda do Muro de Berlim à luta pelo fim do apartheid na África do Sul. O rock também mudou a maneira de fazer caridade. Veja os projetos Band Aid e Live Aid, comandados pelo (cantor irlandês) Bob Geldof nos anos 80. Sua iniciativa de reunir roqueiros para cantar uma música de Natal e fazer um concerto em prol dos famintos da Etiópia ajudou muita gente.

O CANTOR BOB MARLEY TINHA SEUS DISCOS PROIBIDOS POR GOVERNOS AFRICANOS NOS ANOS 70. O U2 ESTÁ SUJEITO A ESSE TIPO DE REAÇÃO?
É claro. Nosso penúltimo álbum foi banido em Mianmar, porque o clipe de uma das canções homenageava um líder revolucionário local. Atitudes desse tipo não me deixam preocupado. Mas fico furioso quando governantes e economistas não me levam a sério. Alguns riem da minha cara, dizendo: "O que um popstar pode entender de economia?". O que não suspeitam é que sou rodeado por pessoas competentes e não estou para brincadeira.

QUAIS SÃO SUAS ARMAS PARA FAZER VALER SUAS REIVINDICAÇÕES JUNTO AOS LÍDERES MUNDIAIS?
Duvido que eles me recebam pelo fato de eu ser um cantor afinado. Na verdade, eles temem a influência de um artista famoso. Afinal, somos ídolos de muita gente na faixa dos 18 aos 30 anos e isso faz de nós formadores de opinião que incomodam. O que eles não esperam ao abrir as portas para mim, contudo, é deparar com alguém de inteligência acima da média, versado em questões financeiras e que pede ajuda em termos bastante razoáveis.

POR QUE O SENHOR ADOTOU A LUTA CONTRA A AIDS NA ÁFRICA COMO BANDEIRA?
Porque se trata de uma tragédia sem precedentes. Em muitos países, escolhe-se quem deve morrer e quem deve viver: como existem poucos remédios, comissões decidem quem terá ou não direito a eles. Há pouco tempo, conheci uma africana cuja irmã havia acabado de morrer de aids e perguntei a ela sobre a frustração de não ter remédios. Ela me disse que, mesmo que os tivesse, jamais os daria à irmã. Preferia dá-los às enfermeiras, que trabalham diretamente com as vítimas da aids.

HÁ ESPERANÇA DE MELHORAR A SITUAÇÃO?
Sim. Aliás, gostaria de fazer um elogio público ao governo brasileiro. O empenho do Brasil em fabricar remédios mais baratos para o combate à aids serve de inspiração para o mundo. Ao criar os genéricos e lutar contra os grandes laboratórios farmacêuticos, o país mostrou a saída. Até então, todos achavam isso impossível. Hoje, quando sento para discutir o problema da África com George W. Bush ou Tony Blair, cito o Brasil como um exemplo a ser seguido.

E QUAL É A REAÇÃO DELES?
Eles ficam amedrontados. A propriedade intelectual é um assunto delicado e a indústria farmacêutica dos Estados Unidos é uma das principais financiadoras do governo daquele país. Essa gente nem pode ouvir falar em remédios genéricos. Eles querem mais é que a idéia não vingue. Eu não ligo para o que a indústria farmacêutica pensa. Quero remédios mais baratos para a população pobre. A minha principal bandeira é acabar com o temor dos africanos de "desrespeitar" a indústria farmacêutica e adotar de uma vez por todas os genéricos. Os africanos compram dos grandes laboratórios porque têm medo da reação das potências mundiais. Mesmo líderes que saíram da pobreza preferem castigar o povo a adotar o exemplo brasileiro.

O SENHOR LUTA PELO PERDÃO DA DÍVIDA DOS PAÍSES AFRICANOS. COMO AJUDAR ESSES PAÍSES SEM QUE O DINHEIRO OBTIDO SE PERCA NO RALO DA CORRUPÇÃO?Não sou ingênuo. A corrupção é mesmo uma praga no continente africano. Pedimos perdão apenas às nações que a combatem de forma ostensiva. É essa postura que nos garante o apoio do presidente americano George W. Bush. Ele me garantiu que dobraria o valor da ajuda monetária dos Estados Unidos à África. Mas apenas aos países que conseguissem provar que estão combatendo esse mal.

O MUNDO DO SHOWBIZ SE SENSIBILIZA COM SUAS CAUSAS?
Atualmente, sou o único artista de peso que participa da Data, minha organização que luta pelo perdão da dívida externa dos países pobres, contra a aids na África e por um comércio mundial mais justo. Mas tenho insistido para que outras celebridades colaborem. Há pouco tempo, estive numa festa na casa de Brad Pitt e encontrei várias dispostas a ajudar. Tom Hanks, Sean Penn e Julia Roberts me perguntaram o que podem fazer. Brad até já se engajou e fez uma viagem à África.

UM ROQUEIRO, DEPOIS DE MORRER, FICA ATÔNITO AO CHEGAR AO CÉU E DAR DE CARA COM O SENHOR. "EU NÃO SABIA QUE BONO TINHA MORRIDO", DIZ ELE. "ELE É DEUS, MAS PENSA QUE É BONO", EXPLICA UM ANJO. O QUE O SENHOR ACHA DESSA PIADA?
Sim, eu sou Deus. E, se reconhecer você em meio ao coro dos que entoam meu nome, deixarei que entre no céu sem escalas. Também dou minha bênção a roqueiros que se empenham em causas nobres. O único senão é que eles têm de morrer na cruz ao completar 33 anos. Falando sério, sempre fui egomaníaco. Apesar disso, desde criança também me preocupei em resolver os problemas de outras pessoas. Aos 13 anos, fiquei fã de Bob Dylan e John Lennon. Gostava tanto de ouvi-los que passei a sonhar com ambos. Eles diziam: "Bono, o mundo é mais maleável do que você pensa. Para resolver alguns problemas, basta se esforçar". É o que tenho feito desde então.

O SENHOR TEM DITO QUE HOW TO DISMANTLE AN ATOMIC BOMB É O MELHOR TRABALHO DO U2. ESTÁ CERTO DISSO?
Acho esse disco excelente, mas sempre é preciso dar um tempo para que as músicas entrem na corrente sanguínea das pessoas. Só depois disso é possível responder com firmeza a essa pergunta. Talvez seja mesmo o melhor trabalho do U2. Minhas letras estão mais maduras, e mostro até uma faceta humilde. É um álbum muito pessoal. A começar pelo título. Eu sou a "bomba atômica" que dá nome ao CD. Em agosto de 2001, meu pai morreu de câncer. Fiquei ao lado dele sempre que tive oportunidade. Cheguei a viajar logo depois dos shows do U2 pela Inglaterra para ficar a seu lado. Mas, quando ele morreu, pensei que poderia ter feito mais. Eu me tornei uma bomba humana. Deixei certas coisas de lado e bebi além da conta. O disco traz poucas canções engajadas e mais letras sobre a vida. Meu desespero e minhas contradições estão ali.

O SENHOR SE PREOCUPA COM O TIPO DE MÚSICA QUE SEUS FILHOS ADOLESCENTES OUVEM? DISCOS DE RAP ENTRAM EM SUA CASA, POR EXEMPLO?
Os irlandeses são famosos pela boca suja. Portanto, não me sinto à vontade para criticar um artista de rap pelo uso de palavrões. Mas sou cuidadoso na educação de meus filhos. Nunca falei palavrão na frente deles. Eles até ouvem rap, mas faço questão de que sejam as versões censuradas, em que o linguajar chulo é substituído por "bips". Costumo falar a eles que os rappers não são violentos nem misóginos como suas letras. Digo-lhes que ouvir suas músicas é como ver um filme violento, em que homens maus fazem crueldades com as mulheres – tudo não passa de ficção.

SUAS DUAS FILHAS JÁ NAMORAM?Não, mas estão empenhadas. E, como um bom pai, procuro testar os pretendentes delas. Quando os conheço, ameaço socá-los no nariz e fico esperando a reação. Talvez seja por isso que nenhuma delas engatou um namoro ainda.

COMO O SENHOR LIDA COM O ASSÉDIO DOS FÃS?
Nunca tive problemas com isso, porque faço o máximo para não chamar atenção. Raramente saio ou viajo com seguranças. Além disso, Dublin é uma cidade que não dá muita bola para nós. Em qualquer lugar do mundo as pessoas ficariam excitadas ao dar de cara com os rapazes do U2. Se você parar um dublinense para dizer que topou com Bono, ele dirá: "E daí?". O fato de morar na Irlanda me ajuda a lidar com o ego.

O SENHOR ESTÁ ENTRE AQUELES QUE SE DESILUDIRAM COM O PRIMEIRO-MINISTRO INGLÊS TONY BLAIR?
Penso que ele nunca deveria ter apoiado a invasão do Iraque. Mas gosto muito de Blair, pois sei que é uma pessoa bem-intencionada. Isso para não falar no fato de que é um roqueiro. Certa vez, dei-lhe uma guitarra de presente. Tempos depois, fui a um jantar em sua casa e verifiquei que ela não estava desafinada. Isso comprova que ele não estava mentindo quando disse que praticava todos os dias.

COMO CATÓLICO E AO MESMO TEMPO MILITANTE CONTRA A AIDS, COMO O SENHOR VÊ A CONDENAÇÃO DO USO DE PRESERVATIVOS PELA IGREJA?
Meu pai era católico e minha mãe, protestante. Isso me habilita a lidar com qualquer tipo de diferença de opinião nessa área. Procuro ajudar as pessoas sem levar em conta se seguem as idéias da Igreja ou não. Religião, seja ela qual for, é antes de tudo um meio de nos aproximarmos de Deus. Nada melhor para isso do que fazer o bem.

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