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segunda-feira, 28 de maio de 2018

A história completa que inspirou a canção "Miss Sarajevo" - Parte III


Nas semanas e nos meses que se seguiram ao concurso, Inela e Marija foram muito solicitadas para sessões de fotografia. Trabalharam juntas como manequins, numa cidade em guerra, até que acabaram por seguir cada uma o seu caminho. Inela casou-se em Sarajevo, em setembro de 1993, ainda menor de idade - os pais tiveram de dar o consentimento. Apaixonara-se por um holandês, Marco Okhuizen, 11 anos mais velho, que trabalhava para a imprensa francesa. "Antes de o conhecer tive um sonho que nunca tinha tido antes e que nunca mais voltei a ter. Eu estava no mar, a nadar em direção a Itália, e enquanto nadava ia falando em inglês com alguém. Disseram-me que esse sonho significava que iria conhecer uma pessoa de fora e que deixaria a cidade. Coincidência ou não, foi o que aconteceu."
Inela e Marco deixaram Sarajevo em 1994. Depois de uns curtos dias em Roma, em casa de uma amiga italiana, e de algumas semanas em Paris, estabeleceram-se por fim em Amsterdã. Ao mesmo tempo que ia trabalhando como modelo em desfiles e sessões fotográficas, Inela foi estudando e começou a trabalhar como designer gráfica. Ainda hoje é essa a sua profissão.
Só voltaria a Sarajevo no final de 1995, já depois de assinados os acordos de paz de Dayton. "Fizemos a viagem de ônibus. Lembro-me de que quando chegamos estava um nevoeiro impossível, não se via nada à frente do nariz. De repente, no meio daquela neblina, abri a cortina e vi a silhueta dos meus pais e da minha irmã, que estavam à nossa espera. Foram emoções muito fortes", relembra. O casamento chegaria ao fim em 1999 e no ano seguinte Inela decidiu voltar a morar na cidade natal. Foi lá que conheceu aquele que viria a ser o pai dos seus dois filhos.
Saturada da guerra e incapaz de continuar a tropeçar na morte todos os dias, Marija conseguiu sair de Sarajevo em 1994. Primeiro rumou até à Croácia e depois de alguns meses em Split, em casa de familiares, comunicou aos pais que estava de partida para os EUA. Até 2003 viveu na Florida e a primeira visita a Sarajevo aconteceu apenas em 1999, cinco anos depois de ter dito adeus à família. "Encontrei uma cidade diferente. Foi uma sensação estranha. Tinha me tornado adulta nos EUA e aquele já não era o meu mundo. Ainda se sentia a guerra, mas, curiosamente, as pessoas estavam muito mais felizes do que agora. Era um tempo de reconstrução, havia esperança no futuro. Hoje, mais de 20 anos depois, o que existe é desilusão com o estado do país", lamenta.
Nos anos que passou nos EUA, Marija Misic, que em Sarajevo frequentava as aulas de Medicina Dentária, acabou por se formar em Economia e Administração de Empresas. Para financiar os estudos teve vários trabalhos temporários. Um deles foi a limpar as mesas de um restaurante de fast food. Estávamos no ano de 1995 e o U2 tinham acabado de lançar o videoclipe de "Miss Sarajevo". Um dia, em casa, vendo televisão, se deparou com a música e com as imagens. Ali estava ela. No palco do BKC, ao lado de Inela Nogic e das restantes concorrentes. No dia seguinte, contou aos colegas de trabalho. Foi difícil acreditarem que alguém que dividia com eles as tarefas de limpeza pudesse estar em destaque em um videoclipe da gigantesca banda irlandesa.
Em 2003, para estar perto dos pais, Marija fez as malas e mudou-se de novo para a capital bósnia. A adaptação não foi fácil. "Depois de dez anos era difícil integrar-me outra vez na mentalidade balcânica." Foi quando estava a ponderar cruzar novamente o Atlântico e voltar aos EUA que, em 2007, conheceu o marido, Steffen, que nessa altura estava destacado numa missão em Sarajevo. A recente mudança da família para Belgrado deu-se há dois anos e meio, depois de Steffen ter recebido novas ordens de Bruxelas. Ironia do destino, hoje Marija sente-se em casa na capital do país que nos anos 1990 era o inimigo mortal da Bósnia. "Vim sem preconceitos e as pessoas têm sido maravilhosas." Agora está fazendo um mestrado em comunicação ao mesmo tempo que escreve um popular blog sobre maternidade.
No início de março, foi convidada para ir falar na televisão. Lhe deram 30 minutos no ar no canal estatal sérvio: "Acredito que tenha sido a primeira vez que alguém de Sarajevo deu o seu ponto de vista sobre a guerra na televisão nacional. Fui diplomática mas falei de forma emotiva. Recebi muitos e-mails onde me disseram que tinha sido corajosa."
Todas as participantes no concurso Miss Sarajevo sobreviveram à guerra, mas entre a vitória de Inela Nogic e o fim do cerco da cidade foram ainda muitas as vidas que se perderam. Segundo a contabilidade oficial, o cerco da cidade, o maior da história moderna, durou 1425 dias e o saldo foi de pelo menos dez mil vítimas fatais.
Um dia, Marija e o pai tinham ido buscar água. O percurso, com cerca de dois quilômetros, implicava atravessar uma ponte que era um dos locais mais perigosos por causa dos snipers. Não havia regra: os atiradores furtivos tanto podiam disparar sobre o primeiro como sobre o segundo. Marija avançou. Correndo. "Comecei a ouvir as balas a caírem ao meu lado", se recoda. "Não fui atingida e escondi-me atrás de um bonde elétrico que esteve parado naquele cruzamento durante a guerra inteira. O meu pai viu tudo. Estava tão em choque que me seguiu andando. Nem sequer correu. Chegou até mim e abraçou-me."
Hoje, depois de ser mãe, Marija confessa que olha para trás de forma diferente: "A sensação que tenho é que nunca deixaria os meus filhos fazerem o que eu fiz. Hoje percebo melhor tudo aquilo pelo que os meus pais passaram. Tenho clara noção da heroína que a minha mãe foi para conseguir alimentar-nos e fazer refeições a partir do nada."
A guerra faz-se de morte e de vida à flor da pele. À flor da sorte. "Nunca me senti tão vivo como naqueles anos. Nunca vivi de forma tão intensa e tão profunda", conta Mijo Misic. "Nesses momentos, o lado melhor dos seres humanos também aparecem. As pessoas aproximam-se e ajudam-se. Depois, no fim da guerra, cada um segue a sua vida", acrescenta Marija. Há lógicas que acabam quando a paz começa. Não apenas na Bósnia.
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