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segunda-feira, 28 de maio de 2018

A história completa que inspirou a canção "Miss Sarajevo" - Parte II


Os pais de Marija Misic tinham plantado sementes de tomate numa das varandas de casa. Um dos frutos começou a nascer devagarinho. A ideia era apanhá-lo apenas quando já estivesse vermelho e maior. E dividi-lo pelos três filhos. "Passei dias olhando para o tomate, vendo ele crescer, à espera que chegasse o dia de o comermos. Houve uma noite em que me levantei da cama e fui comê-lo. Fiquei muito chateada comigo porque não agi de propósito. Tinha tanta fome que fiz tudo sem pensar", recorda Marija, em conversa com o DN. Foi ela a terceira classificada no concurso Miss Sarajevo. Ela também foi imortalizada no videoclipe do U2.
Hoje vive em Belgrado com o marido, de nacionalidade alemã, que trabalha como diplomata para a Comissão Europeia. Têm quatro filhos. O mais novo tem 2 anos e a mais velha sete. Apesar de muito jovens, as crianças ouvem as conversas dos adultos e quando visitam os avós em Sarajevo ainda veem prédios com buracos de balas. Fazem perguntas. Querem saber que passado de guerra é esse que a mãe carrega. "Não lhes respondo. Quando forem mais velhos eu conto para eles a história. Neste momento ainda não quero", diz Marija.
Numa realidade em que um pequeno tomate tinha tanto valor, parecia-lhe no mínimo absurda a sugestão das amigas para que entrasse no concurso de beleza. Ela disse à elas que não, mas elas contaram para ela que já tinham dado o seu nome aos organizadores.
Foram vários os papéis que Marija foi desempenhando durante a guerra. "Costumo dizer que passei por três fases. A primeira foi me ajustar à situação, sem saber muito bem o que fazer. A segunda fase foi a da sobrevivência, quando já não havia comida, nem luz, nem água. Tudo se resumia a tentar viver um dia após o outro. A terceira foi quando percebi que tinha de fazer alguma coisa para ajudar os outros", resume. Primeiro conseguiu emprego na televisão.
Apesar dos riscos, todos os dias saía para a rua para descobrir e informar sobre os locais e as horas prováveis de distribuição de água, para relatar os ataques e as mortes. Para tentar obter todas as informações que pudessem ser úteis numa cidade cercada. Ao mesmo tempo, cortava os cabelos das vizinhas e, fazendo uso dos conhecimentos que já tinha adquirido como estudante de Medicina Dentária, tratava dos dentes a quem a ela recorria.
Alguns meses depois, deixou a televisão e passou a colaborar com a Cruz Vermelha na distribuição de cartas e pequenos bilhetes. Levava de porta em porta as mensagens que chegavam de fora e recolhia as cartas que os habitantes de Sarajevo queriam enviar para os familiares no exterior. "Foram momentos muito emotivos. Quando recebiam uma carta, as pessoas ficavam tão agradecidas que queriam me dar me o último pedacinho de pão", recorda Marija. "Era uma jovem hiperativa e com um coração enorme", explica o pai, Mijo Misic. "Eu queria que ela ficasse em casa, mas um dia ela me disse com lágrimas nos olhos que queria ajudar as pessoas."
Antes da competição houve três ou quatro semanas de preparativos. Era preciso ensaiar o espetáculo, reunir roupas, percorrer a cidade à procura de maquiagem, aprender a desfilar na passarela. "Depois de ter colaborado na eleição da Miss Jugoslávia durante vários anos, acabou por ser simples trabalhar com aquelas garotas", explica ao DN Gordana Magas, a bailarina que funcionou como professora das concorrentes. "A maior preocupação foi sempre a segurança. De que forma seriam capazes de chegar ao local combinado? Voltariam depois a casa sãs e salvas?", acrescenta.
"Me lembro bem dessa fase. Às vezes havia encontros, outras vezes não. Nem sequer sei como nos conseguíamos coordenar, tendo em conta que não havia sequer telefones", conta Marija, à mesa de jantar da vivenda em Belgrado. A conversa vai sendo interrompida pelo filho mais novo, que pede a atenção da mãe e que vai combatendo o sono. O resto da família continua morando em Sarajevo. Foi lá, na cafetaria do Hotel Europa, no centro da capital bósnia, que o DN se sentou para falar com o pai, a mãe e Igor, o irmão mais novo de Marija, que hoje tem 31 anos.
"Não tinha qualquer lógica deixá-la participar. Era muito perigoso. Qualquer reunião de muitas pessoas era arriscada por causa dos bombardeios. Na nossa família, por exemplo, tínhamos algumas regras. Nunca dormíamos todos em um mesmo local. Aquela não era apenas uma guerra entre exércitos. Os civis eram os alvos."
No dia do concurso, Milena, a mãe de Marija, ficou em casa, mas o pai fez questão de estar presente. Quando chegou ao BKC, o Centro Cultural Bósnio, onde o evento estava prestes a começar, foi quase impossível acreditar no que estava vendo: "Fiquei espantado com o aparato da mídia. Parecia que estava sonhando. É surreal imaginar tantos jornalistas de guerra num concurso de beleza. Nesse momento percebi que algo com muito significado estava acontecendo. Quando depois vi as notícias tive noção de que nesse dia um grito tinha saído de Sarajevo, um grito que dizia que estávamos vivos e que éramos pessoas normais tentandi viver uma vida normal."
Segundo conta Dino Beso, o eco desse grito fez-se ouvir em Washington, na Casa Branca. "Quando Bill Clinton veio para cá, me disse que foi ao ver as concorrentes com a faixa que dizia 'Don't Let Them Kill Us', que começou verdadeiramente a pensar no destino da Bósnia."
"Todos os momentos da competição foram marcantes, especialmente o final, com a mensagem "Não Deixem Que Eles Nos Matem", sublinha Magas. "As garotas queriam mostrar ao mundo que existiam, que eram belas, jovens e vulneráveis. Queriam pedir ajuda para que alguém acabasse com todo aquele sofrimento e tristeza que lhes marcou os anos de juventude. Todas foram vencedoras", acrescenta a ex-bailarina.
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