Revista Rolling Stone - Edição 55 - Abril de 2011
Por trás dos segredos da turnê 360º, a maior já feita pelo U2 – e por qualquer outra banda na história - Parte Final
Seja em Zagreb, Londres ou Chicago, todos os shows começam mais ou menos do mesmo jeito: um trecho de "Kingdom Of Your Love" ("Soon") - uma música inédita do U2, com batida pulsante e vocais de coral - toca bem alto e Mullen entra sozinho no palco.
Um único holofote brilha sobre o baterista enquanto ele toca uma longa sequência de caixa, tambor e prato que serve de introdução à "Breathe", faixa de No Line, uma espécie de valsa turbinada com versos à la Dylan e um refrão envolvente como só o U2 pode fazer. Os companheiros de banda de Mullen se juntam a ele, um por um - Bono entra por último, arrastando seu pedestal de microfone como se fosse uma manivela que faz a banda funcionar. "É demais entrar quando o público está esperando Bono", diz Mullen enquanto janta arroz com legumes em uma mesa de piquenique do lado de fora da tenda do catering antes de um dos shows de Zagreb. "Faz 35 anos que eu estou esperando o solo de bateria. Eu nunca ia ficar esperando em pé, mas isto é o mais próximo possível."
Ele não é o integrante da banda que os fãs esperam ver primeiro - e aquela também não é a música que eles devem estar aguardando. Depois de "Breathe", há três músicas seguidas de No Line (a faixa-título, "Get On Your Boots" e "Magnificent") - e mais três canções do álbum aparecem, incluindo a balada épica "Moment Of Surrender", que fecha o show. A ênfase dada às novidades é ainda mais ousada quando se considera que 'No Line On The Horizon' mal vendeu um milhão de exemplares nos Estados Unidos - colocando-o entre os álbuns do U2 que menos venderam - e que o trabalho até agora não produziu nenhum single de sucesso. "Eu chego lá e canto "Breathe" toda noite para um monte de gente que não conhece a música", diz Bono. "Eu sou um artista de performance - não vou me ater a uma música que não comunique ou não adicione alguma coisa. As músicas são ótimas ao vivo, e acho que o álbum é ótimo. Acho que no futuro será visto assim: 'Caramba, esse é um dos álbuns mais desafiadores deles'." Mas, no caminho de Chicago, Clayton está preocupado com o fato de que os norte-americanos talvez sejam mais impacientes do que os europeus: "Estou um pouco temeroso para ver se podemos ou não abrir com quatro músicas novas", ele diz. "Isso pode ser complicado." E, depois do segundo show em Chicago, Bono observa que o show "ainda precisa de uma certa mexida". Então, na segunda semana da parte norte-americana da turnê, o U2 tenta tirar "Breathe" do set list - começando a apresentação com "Magnificent" em vez dela e reduzindo o número de músicas novas no começo do show para três.
A música nova que qualquer público de fato conhece é o primeiro single de No Line, "Get On Your Boots" - que a banda toca com arranjo mais direto e mais pesado ao vivo, tirando os elementos eletrônicos. O U2 adora tocar essa canção, mas três dos quatro integrantes hoje reconhecem que foi a escolha errada para o primeiro single (The Edge continua a defendê-la). "É interessante o fato de estar dando certo ao vivo", diz Clayton. "Mas eu acho que o que aconteceu foi um problema comum do U2. Acho que nós provavelmente trabalhamos tanto, tanto, tanto nela que, em vez de executar bem a ideia, acho que provavelmente colocamos cinco idéias na música, e isso só serviu para confundir as pessoas. Elas não sabiam bem o que estavam ouvindo." Bono tem ideias próprias. "Olha, às vezes o nosso público não é tão animado quanto nós gostaríamos que fosse", ele diz com um sorriso. "'Get On Your Boots', do jeito como foi lançada, é uma espécie de cruzamento, meio dance, meio indie rock. As pessoas não ficam muito seguras com o lado dance do U2. Elas querem "Vertigo". E, quando fizemos isso da última vez - com "Discothèque", de Pop, as pessoas também não gostaram."
O sistema de som da turnê 360° talvez seja o mais alto já construído - mas, no meio da elevação das vozes nesta noite em Zagreb, a multidão de algum modo está quase conseguindo abafá-lo. O show atinge seu ponto máximo com "One", que Bono apresenta com muito cuidado: "Esta próxima canção significa muitas coisas diferentes para muitas pessoas diferentes", ele diz, e uma tradução em croata apareceu na tela de vídeo. "Hoje, vamos tocá-la para todas as pessoas desta região cujo coração foi partido por ideias frias." Primeiro um silêncio se instalou enquanto o público absorvia as palavras; depois, uma explosão de aplausos. Na noite seguinte, Bono ainda pensava naqueles momentos. "Os Bálcãs inventaram uma certa obstinação, uma certa teimosia", ele diz. "Assim, seria necessário uma canção de amor amarga e distorcida como esta para que todos eles conseguissem se identificar: 'Did I disappoint you?' [Eu te decepcionei? ] A raiva, o amargor, a melancolia da canção fazem com que fique tudo certo. Nós não somos um. Nós somos um, mas não somos iguais. Nós não somos iguais. Essas pessoas abriram mão de tudo por causa de uma diferença. Cada pessoa tem uma visão diferente a respeito daquela música, e ela muda para mim a cada noite. Mal consigo respirar quando canto. Mal consigo proferir as palavras."
Pela primeira vez na meia dúzia de encontros que tive com Bono, os óculos escuros estão apoiados em cima da testa, e seus olhos azuis desnudos ardem com intensidade - ou ele ainda está nadando na adrenalina dos shows ou eles são sempre assim sem as lentes escuras. Ele está no jatinho, no caminho de volta para o quartel-general, no sul da França. Do outro lado do corredor está a mulher de Bono, Ali Hewson - estonteante -, que lê jornais e saboreia seu jantar, e os dois filhos pequenos deles, ambos enrolados para dormir depois de passar a maior parte da noite correndo de um lado para o outro no backstage, enquanto o pai fazia a mesma coisa em cima do palco. "Amor é uma palavra muito grande para jogar de qualquer jeito por aqui", Bono prossegue, ganhando fôlego, sobrepondo-se ao barulho do motor. "Carregar a faixa da não violência, à primeira vista, parece bonito para um irlandês, mas nós morávamos a 160 quilômetros dos problemas. Então, de certo modo, não foi nenhum ato de grande coragem para nós tirar a cor da bandeira e pregar a não violência."
Bono está usando uma camiseta preta e jeans, e está no auge da forma física, parecendo alguns quilos mais magro do que no começo do ano. Ele já não bebe muito na estrada, mas também não é exatamente abstêmio. Embaixo da mesa, seus pés pálidos estão descalços e ele chutou para longe um par de chinelos nada rock and roll. Ele chega a uma conclusão inesperada, defendendo a ideia de que sua banda se guia pelas melhores ideias daquele tempo. No final, talvez a espaçonave do novo show seja uma máquina do tempo - cujo destino é 1967. "A gente pensa nos Beatles e pensa em 'All You Need Is Love', e naquela explosão de ideias, e no renascimento que foi a década de 60", ele diz. "O núcleo daquilo era essa ideia de amor, da qual saiu o movimento feminista, o movimento gay, o movimento antiguerra. Tudo se baseava em uma ideia judaico-cristã muito simples, a filosofia de ter que amar o seu vizinho, mas não como conselho; como ordem, como decreto: 'Ame o seu vizinho'." Bono sorri pela primeira vez desde que começou a falar de tortura e ódio. "É bem estranho", ele diz, "quando a gente tira essas coisas de um show de rock".