Bono (Do encarte 'The Joshua Tree' Deluxe)
NÓS VÍAMOS O ÁLBUM COMO DUAS METADES, QUASE COMO O HEMISFÉRIO NORTE E SUL DA AMÉRICA.
Nós não estávamos interessados na América o continente ou no corpo político, mas na idéia mística da América.
Eu sempre digo que a América não é só um país, é uma idéia, e nós estávamos procurando como esta idéia expressava-se nos anos 80. Isso foi quando a ganância era boa, foi Wall Street, o fenômeno, e Wall Street, o filme, era ganhar, ganhar, sem tempo a perder, era a garota materialista e altos preços no mercado, um novo tipo de prosperidade e o início da era da informação... e então nós tínhamos que arruinar isso para descrevê-la como um deserto.
Mas nós tínhamos a sensação que aquele povo estava sedendo pelo idealismo que tinham nos anos 60, sedento por uma vida espiritual que não era aquele fanatismo dos televangelistas, sedento por música ambiciosa também. O The Clash tinha acabado, a música estava começando a encarar seu próprio lugar, com os cultos à morte góticos ou os indies se lamentando. Precisa haver uma frustração na imaginação da arte e da literatura e ainda mais, como Wim Wenders colocou, a América tinha colonizado toda a nossa imaginação, a força da sua cultura, sua popularidade, seus filmes, eram tão poderosos que a única maneira de descrever essa América centenária era entrar na barriga da besta. E foi isso o que fizemos – com nosso ponto de vista irlandês.
O povo irlandês sempre amou a América, era uma espécie de terra prometida. E se eu estava enfurecido com a pregação dos televangelistas, eu ainda amava a poesia das escrituras que eles citavam, e eu amava a geografia poética do país. Nós costumamos anotar o nome dos lugares que nós viajamos – eu sempre lembro de Truth or Consequences (Verdade ou Consequência) no Novo México. Eu estava ouvindo blues e mergulhado nos escritores americanos, dos escritores nativos americanos aos escritores negros como James Baldwin, Ralph Ellison, e poetas e dramaturgos como Tennessee Williams, Langston Hughes, Allen Ginsberg e Charles Bulowski. Eu adorava as peças de Sam Shepard, seu livro de pequenas histórias Motel Chronicles (Crônicas de Motéis), e não pude tirar da cabeça algumas daquelas imagens de “Paris,Texas”.
Então havia respeito naquilo que sentíamos sobre a América mas também um pouco de choque. Choque e respeito. Eu amava a ingenuidade dos americanos que acreditavam que tudo é possível, que ficavam de olhos úmidos com a visão de sua bandeira, que tinham este desejo de acreditar em algo maior que eles mesmos. Mas como eu viajei com a Ali para a América Central, vi que as mesmas pessoas que representavam liberdade para o resto do mundo estavam bombardeando vilas em El Salvador e tentando impor liberação teológica onde quer que ela apresentasse justa. Eu tinha este caso de amor com a literatura americana ao mesmo tempo em que eu me conscientizava do quão perigosa a política externa americana podia ser para os países ao seu redor. Como no brutal massacre dos Sandinistas.
Duas Américas, a América mística e a América real – severa realidade ao lado do sonho. Ela era próspera e seca e eu comecei a ver esta época como uma aridez espiritual. Eu comecei a pensar sobre o deserto, e o que veio junto foi verdadeiramente uma clara imagem de onde eu estava pessoalmente – um pouco fora de forma em minha vida emocional mas muito acordado como escritor e como analista do que eu via a minha volta, meu amor pela América e meu medo pelo que a América poderia se tornar. Então no centro disto estão todas estas canções pessoais, canções de amor, canções de protesto, canções sobre claustrofobia e sobre espaços abertos... canções sobre tentar não perder a sua cabeça depois de se tornar uma estrela do rock. E uma imagem emerge destes diferentes pedaços, um tipo de mosaico do pessoal e do político, com melancolia, com raiva, com ternura – e estas idéias e imagens unidas em uma única locação geográfica, um único foco naquele deserto, a imagem da Joshua Tree.
Eu escrevia na primeira pessoa porque eu queria ser um bom contador de histórias, mas ainda me irrita que eu nunca terminei as letras, que nós gastamos muito tempo tentando finalizar as músicas. Eu gastei muito dos meus primeiros vinte anos tentando fazer canções surgirem conforme seguíamos, mudando palavras todas as noites, escrevendo por improviso. Mas eu percebi que as letras nos primeiros quatro álbuns não são realmente letras, são rascunhos. Eu não era realmente um escritor, eu era um pintor, ou um sentimentalista ou um gritalhão, eu parecia quase ter medo de escrever, isso era uma forma avançada de postergar. Eu fazia isso nos meus trabalhos de escola. Você faz qualquer coisa exceto as coisas que tem que fazer porque fazê-las traz um julgamento – medo de fracassar, provavelmente. Então apenas não tente. Viva sem a sua sagacidade, o que talvez eu seja bom nisso.Dar o fora, criar imagens e então justificá-las com a primeira pincelada. Então nesta época, nós demos mais tempo para as letras do que nas gravações anteriores mas ainda menos do que deveria ter sido, a melodia ainda era mais importante do que as palavras, a direção da letra em vez da rima e ritmo das palavras “Streets” por exemplo, foi uma idéia gigante pobremente expressada. Outras músicas foram jogadas fora porque não soavam bem. Eu ainda lembro delas, e espero ainda cantar alguma no futuro – as canções têm sua própria vida uma vez que são gravadas, então por que elas devem parar de crescer?
Eu sou feliz com algumas músicas: “I Still Haven’t Found” está na tradição dos Salmos de Davi, uma canção sobre dúvidas que reforçam a fé. “Bullet” também, tem um gótico sentimento bíblico, uma imagem do seu rosto me vem vermelha como uma rosa num espinheiro. Era Ronald Regan, o que eu nunca falei pra ninguém naquela época. Brian Eno disse “Você vai estragar isso para as pessoas se lhes der imagens”. “Running To Stand Still” foi uma tentativa de fazer um roteiro narrativo em uma canção situado em algum lugar entre a epidemia de heroína das Sete Torres ao norte de Dublin e esta América mística. “Red Hill Minning Town” tem um verso que me põe de joelhos, sobre como “we wait all day/For night to come/And it comes like a junter (child)” (“nós esperamos o dia todo/pela chegada da noite/e ela vem como uma caçadora (criança).” Aquele verso é inexplicável, eu ainda espero descobrir o que significa.
Por todas suas falhas, principalmente minhas cantando e com as letras, eu acho que este é o nosso primeiro grande álbum realmente. Eu lembro do Danny Boy quando estávamos terminando “Mothers of the Disappeared” perdendo sua cabeça e fazendo uma performance com sua mesa de mixagem como se ele fosse Mozart no piano, a cabeça soprando para traz numa brisa imaginária, chovia torrencialmente fora do estúdio e eu estava cantando sobre “in the rain we see their tears” (“como vemos seus medos na chuva”), as lágrimas daqueles que haviam desaparecido. E quando você ouve aquela mixagem você pode realmente ouvir a chuva lá fora. Foi realmente mágico, é um milagre da gravação. Muito melhor do que a banda que fez isso na época.
Agradecimento: Forum UV Brasil