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sábado, 22 de abril de 2017

Um retorno do U2 ao passado, de olhos bem abertos na América - Parte 01


30 anos depois, retornam à América com a música que os transformou na consciência do planeta. Bono quer falar para Trump e quer fazê-lo de cima de um palco com as canções de 'The Joshua Tree', o seminal álbum de 1987 – e para ouvi-las de viva voz vamos ter, desta vez, que saltar a fronteira. A ponte entre o passado brilhante e o futuro de uma banda que insiste em permanecer grande.

A maior parte das bandas, quando chega a hora de tomar decisões em relação aos próximos passos criativos, procurará inspiração na espuma dos seus dias, nos tumultos do coração, nas pequenas coisas da vida que por vezes são mais do que suficientes para preencherem grandes canções. O U2, no entanto, parecem funcionar em outra dimensão e reagir diretamente aos grandes desígnios que marcam gerações e alteram o rumo da história global.
Depois de 'Songs Of Innocence', o álbum de 2014 com que Bono, The Edge, Larry Mullen, Jr. e Adam Clayton procuraram revisitar emocionalmente o seu próprio passado, o grupo irlandês, seguindo a diretriz dos 'estados contrários' de William Blake (o artista inglês que em finais do século XVIII editou o livro de poemas ilustrados 'Songs of Innocence and Experience'), atirou-se às gravações de 'Songs Of Experience'. Mas o mundo, essa ostra em que habitam os caras que em 1980 estrearam com 'Boy', perturbou as intenções do U2 que perante a declaração do Reino Unido de uma vontade popular de abandonar a União Europeia e, sobretudo, testemunhando na América a inexorável escalada ao poder de Donald Trump, percebeu que as canções que praticamente terminaram de gravar talvez não refletissem esses tortuosos golpes nos rins da história. "Percebemos que precisávamos colocar o álbum no gelo por um minuto", explicou The Edge à Rolling Stone, "para pensar sobre tudo. O mundo é agora um lugar diferente e nós precisávamos de uma oportunidade para reconsiderar tudo".
O U2, como qualquer super-herói, têm consciência de que com grande poder vem também uma enorme responsabilidade. E uma banda que num repente viu a sua música chegar a 500 milhões de usuários do iTunes no que o patrão da Apple, Tim Cook, descreveu como "o maior lançamento de álbum de todos os tempos" e que, antes, na turnê 360º, tocou para mais de 7 milhões de pessoas em 110 megaconcertos, sabe bem que quando fala é escutada em todo o planeta. O U2 sente que neste momento precisam falar e que o mundo precisa os ouvir. É, por isso mesmo, tempo de retornar ao momento em que o U2 descobriu a América e em que o mundo descobriu o U2, tempo de retornar a 'The Joshua Tree': "foram dias difíceis e escuros", explicou The Edge, uma vez mais à revista norte-americana, referindo-se a um período em que Ronald Reagan estava na Casa Branca, com ações militares ilegais a serem levadas a cabo na América Central e ditaduras sangrentas como a que sancionou assassinatos em massa no Chile. "Até parece que voltamos lá atrás", prossegue o guitarrista. "Nunca demos a nós mesmos a possibilidade de celebrar o nosso passado porque sempre olhamos em frente. Mas sentimos que este é um momento especial e que este é um álbum especial".
'The Joshua Tree' é, de fato, um álbum especial: lançado há 30 anos – foi formalmente liberado em 9 de março de 1987 –, o trabalho de "Where The Streets Have no Name" e "I Still Haven’t Found What I’m Looking For" acumulou vendas globais superiores a 25 milhões de cópias e é, por isso mesmo, o mais popular dos registros da discografia do U2. Foi esse o disco que catapultou a banda irlandesa para a escala global, oferecendo-lhes uma voz que ultrapassou em muito o mero plano musical, transformando-os num símbolo recorrente do humanismo e do ativismo em prol das causas certas. O grupo nunca mais abandonaria esse púlpito: estas três décadas viram Bono e o U2 abraçarem causas humanitárias, declararem o apoio a líderes mundiais como Nelson Mandela ou Barack Obama e a alinharem esforços com organizações como Greenpeace, War Child ou a Anistia Internacional; o U2 celebra em palco com líderes políticos o acordo de paz alcançado na Irlanda do Norte, suportaram organizações protetoras das crianças em Chernobyl e ONGs que combatem a fome e a doença em África, colocaram-se ao lado de defensores da democracia na antiga Birmânia e junto de músicos que perderam tudo com o furacão Katrina em Nova Orleans. O U2, basicamente, têm corrido o mundo a tentar salvá-lo de si mesmo. E sentem que, uma vez mais, precisam de agir. O aniversário de 'The Joshua Tree' oferece a moldura certa para o que o grupo quer agora dizer. O fato de em apenas 24 horas terem vendido um milhão de ingressos para as primeiras datas anunciadas para uma turnê em torno do aniversário de 'The Joshua Tree' parece também querer dizer que o mundo está interessado em ouvi-los.

Não é só rock and roll…

"Sobre as eleições americanas...", elaborou Bono recentemente numa reveladora entrevista ao site oficial do U2, "enquanto banda irlandesa, claro que não tínhamos um voto, mas tínhamos uma voz e quisemos usá-la para denunciar o que nos pareceu ser uma retórica de fuga, coisas perigosas... Mas numa democracia a última palavra é das pessoas – exatamente como deve ser. Eu opus-me a Trump enquanto, ao mesmo tempo, compreendia que muitas das pessoas que o apoiaram são o tipo de pessoas com quem cresci e em que me revejo até hoje. E na minha cabeça, no mínimo, o resultado da eleição exigiu que me colocasse algumas questões: 'O que é que não estou vendo aqui?', 'Estarei desencontrado com valores americanos?', 'Estarei desencontrado com o povo americano?'". As questões com que Bono se debate são a inspiração para uma turnê que o grupo faz questão de esclarecer que não se encaixa facilmente na categoria da nostalgia – "enquanto banda", adverte Bono, "não somos conhecidos por olhar pelo espelho retrovisor". E portanto, prossegue o cantor, "no que diz respeito à turnê de The Joshua Tree, a minha esperança é, em primeiro lugar, que seja uma transcendente noite de rock and roll; em segundo lugar, se me forem permitidas ainda maiores ambições para este concerto de rock, adoraria que se tornasse uma oportunidade para que tanto o nosso público como nós próprios pudéssemos colocar a questão: 'o que significa hoje ser americano ou europeu?'. Há 30 anos, 'The Joshua Tree' encontrou um terreno comum por apelar a um terreno mais elevado. Esta será uma turnê para os vermelhos e azuis [republicanos e democratas], para a costa e para o interior... porque a música consegue unir as pessoas tanto quanto a política as consegue separar. É uma ótima tela e seria fantástico se conseguisse também ser uma meditação de alta voltagem sobre o que se passa hoje em dia".
Para já, a 'The Joshua Tree Tour' tem 33 datas anunciadas, 21 das quais na América do Norte (com os Mumford & Sons, One Republic e Lumineers como bandas de abertura) e as restantes na Europa (com os High Flying Birds de Noel Gallagher dando início à noite) com concertos já anunciados para Inglaterra, Alemanha, Itália, Espanha, Irlanda, França, Holanda e Bélgica. O início desta viagem ao passado está marcado para 12 de maio, em Vancouver, no Canadá, e, para já pelo menos, estende-se até ao 1º dia de agosto, data em que o grupo tocará em Bruxelas, na Bélgica. Há uma novidade importante nesta turnê que poderá ditar parte do futuro da carreira ao vivo do U2: em 9 de junho, o grupo assinará a sua primeira aparição num festival americano de primeira grandeza, o Bonnaroo, que tem lugar no Tennessee e que no cartaz conta também com artistas como The Weeknd ou Chance The Rapper. The Edge parece ansioso por essa experiência, dando a entender que poderá se repetir: "fizemos muitos festivais no início e me lembro deles sempre com grande carinho. Num festival, há um aspeto combativo que nos obriga a nos mantermos no topo de forma, de uma maneira positiva".
Como se sabe, tem havido múltiplas turnês em torno de álbuns históricos, de Screamadelica, dos Primal Scream, a The River, de Bruce Springsteen. Mas o U2 pretende fazê-lo à sua maneira, obrigando-se a resolver alguns problemas, como o fato de no tracklisting original as três primeiras canções serem "Where The Streets Have no Name", "I Still Haven’t Found What I’m Looking For" e "With or Without You", três singles que foram número 1 em 1987 e que qualquer banda mataria para poder poupar ao longo de toda uma carreira, resguardando-as, certamente, para o final apoteótico de qualquer concerto: "talvez não venhamos a começar o show com a primeira faixa", admitiu The Edge. "Deveremos precisar preparar um crescendo até esse momento". Adam Clayton também levantou um pouco do véu em declarações à imprensa americana: "talvez juntemos algumas das canções com outras de outros álbuns que possam ter temas similares. Vamos fazer experiências até nos sentirmos satisfeitos".
De acordo com as entrevistas até agora publicadas – e só Larry Mullen, Jr. parece ainda não ter sido ouvido... – a ideia de que esta 'The Joshua Tree Tour' nasceu de um impulso de fazer face ao momento histórico que o planeta atravessa parece ser a correta e tudo o que resto está sendo pensado no contratempo da estrutura musical do concerto – que deverá ter um setlist em torno das duas horas e meia, de acordo com declarações de Adam Clayton – até ao lado visual e técnico do espetáculo.
No que diz respeito ao setlist, já há uma certeza: a de que o U2 irá tocar canções que há 30 anos não são interpretadas ao vivo, como "Exit" ou "Trip Through Your Wires", e até, o caso de "Red Hill Mining Town", uma que nunca chegou a ser levada para o palco. Na 'America First' de Donald Trump, será curioso perceber como funcionará uma canção escrita em propósito de uma greve de mineiros na Inglaterra e em que se cantam palavras como "We're wounded by fear / Injured in doubt". Bono, Larry, The Edge e Adam têm razão ao reconhecer que em 'The Joshua Tree', há material que pode servir como um comentário da atualidade.

Originalmente publicado na BLITZ de março de 2017
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