Volta ao passado
"Recentemente", declarou Bono ao site oficial do U2, "voltei a ouvir 'The Joshua Tree' pela primeira vez em quase 30 anos. É quase uma ópera. Com muitas emoções que estranhamente parecem atuais – amor, perda, sonhos estilhaçados, a procura do esquecimento, polarização... tudo o que importa. Cantei muito algumas destas canções, mas nunca cantei todas. E estou disposto a isso se o nosso público estiver tão entusiasmado como nós. Vai ser uma grande noite, especialmente quando tocarmos em casa, Croke Park. Foi onde o álbum nasceu, há 30 anos", recordou o vocalista, antecipando assim o concerto na Irlanda, em Dublin, de 22 de julho próximo.
Entretanto, Willie Williams, o diretor técnico que tem desenhado os palcos do U2 nos últimos 35 anos, também já adiantou algumas ideias em relação ao que as pessoas vão encontrar nesta turnê. Se na última aventura de estádios, a turnê 360º, o U2 quis reinventar a roda e perceber como poderiam encaixar públicos ainda maiores nas lotações de estádios, nesta, explicou Williams, a ideia será voltar atrás no tempo: "de certa maneira, depois da 360º é como se me tivessem dado um passe livre. Aquele foi o concerto de estádio para acabar com todos os concertos de estádio". E agora, como o U2 explica à Rolling Stone, a ideia será voltar ao tempo de 'The Joshua Tree', ter um palco inspirado no formato da icônica árvore do deserto, e, claro, voltar a surpreender. "As expectativas estão estratosfericamente mais altas do que estavam há 30 anos", admite Williams, "mas haverá certamente referências a como as coisas aconteciam naquele tempo".
O U2 chegou a 1986, "aquele tempo", após uma jogada de risco estético que lhes escancarou as portas do futuro, resgatando-os ao limbo das arenas a que poderiam ter sido condenados caso tivessem seguido a fórmula de 'War', o álbum de 1983 que incluía canções como "Sunday Bloody Sunday" ou "New Year’s Day". Com 'The Unforgettable Fire' e com a dupla formada por Brian Eno e Daniel Lanois encarregados da produção, o U2 soube reinventar-se e dar um significativo passo em direção ao futuro. Em 1985, a banda irlandesa passou muitos meses na estrada e assinou a sua mais longa turnê até à data, com 113 concertos, quase metade dos quais na América do Norte. Dessa marcante experiência nasceu o EP 'Wide Awake in America', que incluía uma poderosa versão ao vivo de "Bad", um testemunho direto do poder que Bono e os rapazes eram já capazes de arregimentar em palco. 'The Unforgettable Fire' e a turnê do mesmo nome ofereceram ao U2, na verdade, uma oportunidade de se instalarem definitivamente na mesma divisão habitada pelos maiores artistas do planeta, por gente como os Rolling Stones, Bob Dylan ou David Bowie. A oportunidade foi agarrada com unhas e dentes. E cuidadosamente ponderada.
"Passamos muito tempo discutindo o que iria ser este álbum", explicou The Edge nas páginas do livro U2 BY U2. "Bono andava lendo Flannery O’Connor e Truman Capote. Eu andava lendo Norman Mailer e Raymond Carver. Estávamos todos enfeitiçados pela América, não a América real mostrada na TV, mas o sonho, a versão da América de que Martin Luther King falava. A linguagem dos escritores americanos atingiu Bono de forma particular, e aquele tipo de imaginário e a qualidade cinemática da paisagem americana tornou-se um ponto de partida".
Do mais panorâmico ponto de vista do presente, Adam Clayton parece vislumbrar uma paisagem idêntica quando estende o seu olhar até 1986: "penso que é interessante poder voltar a 'The Joshua Tree' porque quando lançamos esse álbum e quando estávamos trabalhando nele, o mundo era um lugar sombrio, pelo menos no que dizia respeito ao Reino Unido e América. Havia um governo Thatcheriano no Reino Unido que tentava destruir o negócio do minério de carvão, procurando impor outro modelo econômico no país. Na América havia as Reaganomics e uma espécie de poder imperial que se infiltrava na política da América central e algumas coisas muito más que tinham a ver com dinheiro do tráfico de droga a financiar armas para guerras nessa zona".
Bono, em U2 BY U2, também ofereceu algumas coordenadas para este mapa emocional e lírico da América: "eu estava viajando bastante, por isso a viagem tornou-se um tema. Andava ouvindo blues e a mergulhado nos escritores americanos, desde a escrita da América nativa até aos autores negros, como James Baldwin, Ralph Ellison e poetas e dramaturgos como Tennessee Williams, Allen Ginsberg, Sam Sheppard, Charles Bukowski". Todas essas palavras abriram para Bono o código genético de um país que lhes permitiu ler os acontecimentos correntes – nas ruas da America, mas também na Nicarágua ou em El Salvador – e perceberem como poderiam ter um papel ativo num necessário alerta às novas gerações. Como poderiam também entender-se como irlandeses no mundo.
Duas Américas
Naquela altura, a banda tinha estabelecido amizades com gigantes como Van Morrison, Bob Dylan ou Keith Richards, eminências pardas da cultura rock e pontes efetivas com uma longínqua memória que o U2 pretendia explorar musicalmente no novo álbum. Os relatos da época apontam para um processo complexo, com The Edge fazendo demos de modo solitário e Bono cruzando as autoestradas da América em busca de inspiração, enquanto Adam Clayton procurava processar o peso da experiência: "se passamos muito tempo aqui ficamos cansados da forma como tudo é agressivamente vendido e imposto. A primeira coisa que eu vou fazer quando chegar a casa é mandar vir uma caneca de Guinness, porque isso é real, e depois ouço alguma música tradicional", desabafava o baixista. Já Brian Eno, em estúdio, parecia conduzido ao limite, consciente da pressão que se depositava sobre os seus ombros, resultante das expectativas e dos anseios da banda. A faixa de abertura, "Where the Streets Have No Name", por exemplo, parece ter tido uma gestação difícil e Eno só não apagou as gravações multitracks porque o engenheiro Pat McCarthy, conseguiu convencê-lo a não o fazer: "penso até que poderá ter havido uma contenção física", recordou The Edge no livro da banda. Foi outro produtor conhecido, Steve Lillywhite, que finalizou a faixa.
As gravações do álbum começaram em janeiro de 1986, estendendo-se até novembro do mesmo ano, entre os estúdios STS e Windmill Lane e ainda duas casas onde o trabalho de composição, gravação e polimento foi igualmente registrado. No meio disso, a banda ainda colecionou precioso lastro emocional na turnê 'A Conspiracy of Hope', – em que embarcou juntamente com artistas como Sting, Bryan Adams, Peter Gabriel ou Lou Reed –, no funeral do roadie Greg Carroll na Nova Zelândia e ainda na América Central, onde Bono se deslocou para se inteirar do ambiente político e social. Tudo isso acabou por surgir filtrado em canções como "Bullet The Blue Sky", "Mothers of the Disappeared" ou "One Tree Hill".
O álbum chegou a ter como título de trabalho 'The Two Americas' porque Bono parecia, justamente, dividido entre uma visão da América mítica, dos grandes espaços naturais, terra de sonhos e liberdade, e uma visão mais sombria de uma América real, cujas políticas expansionistas causavam severos danos em países periféricos. Dessa visão mais benigna falam canções como "In God’s Country", com o grupo a ser esmagado literalmente pela escala geográfica de algumas partes do país que se tinham proposto descobrir. Adam Clayton, no livro de Niall Stokes 'U2: Into The Heart' (que se dedica a descodificar as histórias escondidas nas canções), conta como o deserto marcou a banda: "foi muito inspirador para nós enquanto imagem mental para 'The Joshua Tree'. A maior parte das pessoas poderia tomar o deserto pelo que é e pensar nele como um espaço desolado, o que também é verdade. Mas com a atitude mental certa também pode ser uma imagem muito positiva porque se pode fazer algo com uma tela em branco, que é o que o deserto é efetivamente".
Entre as dúvidas de Bono, que chegou a ponderar ligar para as fábricas para interromper a fabricação do disco, e as expectativas da gravadora, que investiu muitos milhares de dólares em expositores para as lojas que destacavam o fato de pela primeira vez na história um disco ser disponibilizado simultâneo em todos os formatos – vinil, CD e cassete! –, o álbum foi lançado em 9 de março de 1987, com as lojas a abrirem na Irlanda e em Inglaterra à meia-noite para saciarem milhares de fãs ansiosos por adquirirem o novo trabalho do U2. Somente no Reino Unido, 'The Joshua Tree' registou vendas superiores a 300 mil cópias nos primeiros dois dias de seu lançamento, eliminando quaisquer incertezas que pudessem ainda existir. O álbum estreou no primeiro lugar das paradas e, no seu mercado de origem, registraria uma longa sequência de 163 semanas no topo. Quebrou recordes e tornou-se o fenômeno de vendas mais rápido da história da indústria discográfica britânica.
Na América, o desempenho foi ainda mais espetacular, com o disco estreando no sétimo lugar das paradas pop e subiu até ao primeiro lugar onde se manteria durante mais de dois meses, acumulando depois uma significativa sequência de mais de 100 semanas no topo, incluindo mais de um terço desse período nos 10 primeiros lugares. O comportamento do álbum foi, como é óbvio, potencializado pelo impacto dos singles, começando com "With or Without You". Mas apesar de preencherem todo este tempo nas paradas e de tomarem extremo cuidado com os videoclipes, a verdade é que a MTV demorou a se render ao U2, mesmo com o grupo lançando vídeos que ficariam na história, sobretudo aquele em que surgiram num telhado na baixa de Los Angeles.
"Where The Streets Have No Name", assim como "With or Without You", foi dirigido por Meiert Avis, irlandês, cuja carreira cresceu paralela à do U2, grupo com que trabalhou desde o início dos anos 80, quando dirigiu o vídeo promocional de "I Will Follow". Para a gravação do videoclipe – uma homenagem direta ao mítico concerto de despedida dos Beatles, no topo da Apple – o U2 escolheu o telhado de uma loja de bebidas – a Republic Liquor Store. As filmagens aconteceram em 27 de março de 1987. Para captar todas as imagens necessárias, o grupo preparou um mini concerto em que além de "Where The Streets Have no Name" interpretou também uma versão de "People Get Ready", "In God’s Country" e "Pride (In The Name of Love)". Claro que mesmo sem publicidade, a presença da banda não passou despercebida aos transeuntes que rapidamente se amontoaram ao redor. A polícia não demorou a intervir, como pode ser visto nas imagens utilizadas na versão final do vídeo. O produtor do videoclipe, Michael Hamlyn, tentou impedir a polícia de interromper as filmagens e quase foi preso, mas a banda conseguiu o que queria: um vídeo icônico que representa na perfeição a experiência americana. "O que se vê naquele vídeo é mesmo o que aconteceu naquela manhã, quase em tempo real", explicou o diretor. "Sermos apanhados fazia parte do plano". Poucos dias depois, em 2 de abril de 1987, o grupo embarcava então naquela que seria a sua mais longa turnê até à data e que efetivamente os colocou no topo do mundo, testemunhando a ascensão do circuito de arenas para o de estádios.
30 anos depois
"Quando começamos a fazer os concertos de 'The Joshua Tree'", explicou Adam Clayton recentemente à Rolling Stone, "aconteceram algumas coisas interessantes. Essa foi uma turnê que começou em arenas e no percurso de um processo de um ano em torno desse álbum. Aconteceu muito lá atrás, nos velhos tempos: quando se lançava um álbum, ele vendia e através do boca a boca ele ia crescendo, chegando ao número 1 das paradas com todo mundo conhecendo ele. Quando isso aconteceu fomos forçados a passar das arenas para os estádios e isso foi um passo enorme, enorme para um grupo de rapazes irlandeses com 25 ou 26 anos que tinham aceitado suportar o peso desta coisa chamada U2 e que andavam há uns cinco, seis ou sete anos nesta viagem, em peregrinação".
"Quando passamos para os shows outdoor, nos estádios, não tínhamos truques", admitiu o baixista. "Não sabíamos o que fazer. Continuamos sem o reforço de vídeo, que era algo que começava a ser uma realidade naquele tempo. Pensávamos que ia, de certa forma, diluir a música. Tínhamos uma fé inabalável na música que acreditávamos ser absolutamente adequada e grande o suficiente para encher um estádio – isso foi um enorme desafio para nós. Todas as noites, Bono precisava se expor e tentar se conectar às pessoas. De certa maneira, era uma tarefa impossível – não se consegue vencer num estádio. Independentemente da qualidade das canções, continuávamos a ser apenas um ponto minúsculo no palco e tudo depende do sistema de som. Isso era muito frustrante".
30 anos depois, tudo parece ter mudado: a tecnologia, certamente, mas também a experiência acumulada por uma banda que é a maior do planeta, uma banda que aprendeu a viver em frente à multidões maciças e globais e que reinventou a escala a que o rock and roll pode funcionar. 30 anos depois, faz sentido voltar ao deserto, à sombra da árvore de Joshua, à América mítica e à real, às canções que definiram um tempo e cujos ecos continuam a nortear um presente que todos andamos tentando perceber. E todos tentando transformar. O U2 nunca rejeitou esse papel messiânico e agora têm a vantagem de estarem de olhos bem abertos numa América que tenta encontrar um rumo. Há uma certeza absoluta: o U2 irá intervir na história, mais uma vez, quando no próximo dia 12 de maio subirem ao palco do BC Place em Vancouver, Canada, e Bono puder falar das diferentes atitudes em relação aos refugiados que os dois gigantes da América do Norte praticam. Trump há de reagir no Twitter. E o diálogo será curioso de seguir.
Originalmente publicado na BLITZ de março de 2017