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quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

O encontro de Bono e Salman Rushdie

Em 11 de Agosto de 1993, o U2 trouxe o autor Salman Rushdie ao palco durante o show no Wembley Stadium, Londres. Os fãs comemoraram sua aparição selvagemente e a história foi divulgada pela mídia no mundo todo. Em entrevistas mais tarde, Rushdie agradeceria o U2 por seu “gesto de solidariedade e amizade”. Ele também admitiria ser um amante da música e diz que ter ficado em frente a uma multidão de 72.000 pessoas foi uma ocasião extraordinária para um escritor.
Nascido na Índia, autor dos 'Versos Satânicos', em que o profeta Muhammad é descrito de forma 'blasfema', Rushdie é, apesar da ameaça constante de morte, um dos mais importantes escritores vivos.
O encontro com Bono, por Salman Rushdie:
No verão de 1986, percorri a Nicarágua para preparar o livro de reportagens que saiu seis meses mais tarde com o título de "The Jaguar Smile" (O Sorriso do Jaguar, Henry Holt, EUA). Comemorava-se o sétimo aniversário da revolução sandinista, e a guerra com os "contras", apoiados pelos Estados Unidos, se intensificava praticamente a cada dia. Estava com minha intérprete, Margarita, uma loira alegre e incrivelmente glamourosa, de certo modo parecida com Jayne Mansfield. Todos os dias víamos evidências dos combates e das dificuldades: a escassez de comida no mercado de Manágua, a cratera numa estrada rural na qual uma mina terrestre dos contras fizera voar pelos ares um ônibus escolar. Apesar disso, certo dia pela manhã Margarita chegou ainda mais animada do que de costume. "Bono vem para cá!", ela gritou, com os olhos brilhando como os de qualquer fã. Mas então, sem mudar a inflexão de sua voz nem diminuir o brilho do olhar, acrescentou: "Diga-me, quem é Bono?".

Os donos do pedaço
A pergunta era, de certo modo, um exemplo do doloroso isolamento do país, tão vívido quanto tudo o que eu tinha visto ou ouvido nas aldeias do front, nas paupérrimas zonas pantanosas da costa atlântica ou nas ruas urbanas destruídas por terremotos. Em julho de 1986, ainda faltavam nove meses parasair o grande álbum do U2, "The Joshua Tree", mas eles já eram os donos do pedaço. Quem era Bono? Era aquele sujeito que cantava "Sunday Bloody Sunday". "Não posso acreditar nas notícias que vi hoje, não posso fechar os olhos e fazer com que desapareçam." E a Nicarágua era um dos lugares onde as notícias tinham se tornado inacreditáveis, do tipo diante do qual não se pode fechar os olhos, de modo que ele estava ali. Não me encontrei com Bono na Nicarágua, mas ele, sim, leu "The Jaguar Smile". Cinco anos mais tarde, quando eu estava passando por certas dificuldades, um amigo meu, o compositor Michael Berkeley, me perguntou se eu queria ir a um concerto da turnê "Achtung Baby", que o U2 estava fazendo, com uma decoração da qual pendiam "Trabants" psicodélicos. Naquela época era difícil para mim ir à maioria dos lugares, mas eu disse que sim e fiquei comovido com o entusiasmo com que o pessoal do U2 recebeu a petição. Assim, acabei em Earl's Court, ouvindo a música deles, de pé entre as sombras. Depois do show, conversei com Bono. Lembro que, naquele primeiro bate-papo, eu queria falar de música e ele queria falar de política: Nicarágua, o protesto que teria lugar em breve contra o lixo nuclear de Sellafield, sua defesa de meu trabalho e de minha pessoa. Não passamos muito tempo juntos, mas nos demos bem. Já Michael Berkeley não agradou tanto assim a Bono. Anos mais tarde, ele me disse que tinha tido a sensação de que o compositor clássico o tratava com condescendência. Acredito que tenha sido um mal-entendido -Michael não é nada condescendente-, mas o fato é que se abriu um vazio entre a cultura popular e a cultura com C maiúsculo, e não havia nada a fazer. Dois anos mais tarde, quando a gigantesca turnê "Zooropa" chegou ao estádio de Wembley, Bono me ligou para me perguntar se eu gostaria de aparecer no palco. O U2 queria fazer um gesto de solidariedade, e aquilo lhes parecia o melhor. Quando contei o plano a meu filho, que tinha 14 anos na época, ele respondeu: "Mas não vá cantar, papai. Se você cantar, não terei outra saída senão me suicidar". Eles não iam me deixar cantar -os rapazes do U2 não são idiotas-, mas saí e senti, por um momento, a sensação de ter 80 mil fãs nos aplaudindo. O público que assiste a uma sessão de leitura normalmente é um pouco menor do que isso. As garotas não costumam subir nos ombros de seus namorados, e não fica bem elas se atirarem contra o palco. E, mesmo na melhor das hipóteses, nunca há mais do que uma ou duas supermodelos dançando ao lado de sua mesa. Naquele dia, Anton Corbijn fez uma foto e nos convenceu, a Bono e a mim, a trocar de óculos. Na foto, eu apareço como um deus, com os óculos de sol de Bono, enquanto ele me olha com ar benevolente por cima de meus conservadores óculos de escritor. Não poderia haver expressão mais clara da diferença entre nossos mundos. Era inevitável que nos criticassem, tanto ao U2 quanto a mim, por unir esses dois mundos. Eles foram acusados de tomar emprestado certo "prestígio" intelectual, e a mim, é claro, disseram que eu teria ficado embasbacado de admiração. O que fazer? Passei minha vida cruzando fronteiras -físicas, sociais, intelectuais e artísticas- e em Bono e The Edge, que são os que conheço melhor até agora, vislumbrei uma avidez semelhante por coisas novas, por tudo o que possa servir de estímulo. Além disso, acredito que a relação do grupo com a religião -um aspecto tão inevitável na Irlanda quanto na Índia- nos tenha dado um tema e um inimigo comum quando nos conhecemos: o fanatismo.

Ridiculamente apócrifas
O fato de meu nome ser associado ao do U2 dá lugar a muitas anedotas. Algumas delas são ridiculamente apócrifas. Dois anos atrás, por exemplo, a primeira página de um jornal irlandês anunciou, com grande segurança, que eu morara -durante quatro anos!- no "The Folly", o chalé para convidados que há no jardim da casa de Bono em Dublin, com vista espetacular para a baía de Killiney. Segundo se dizia, eu ia e vinha à noite, num helicóptero que pousava na praia próxima à casa. Há outras histórias, por outro lado, que parecem apócrifas, mas, infelizmente, são reais. É verdade, por exemplo, que em certa ocasião eu dancei -ou, para ser mais exato, dei pulos- com Van Morrison na sala da casa de Bono. Também é verdade que, logo cedo na manhã seguinte, fui alvo da língua afiada do ilustre Morrison (é fato sabido que ele costuma terminar uma noite longa de mau humor. Também é possível que meus pulos de canguru não estivessem à altura de suas expectativas). Ao longo dos anos, o U2 e eu falamos em colaborar em diversos projetos. Bono expôs uma idéia que tinha para uma obra musical, mas não consegui colocar minha imaginação para funcionar. Vivemos outra longa noite dublinense (intermediada por uma garrafa de uísque Jameson's), durante a qual o cineasta Neil Jordan, Bono e eu planejamos a filmagem de uma adaptação de meu romance "Haroun e o Mar de Histórias" (Companhia das Letras). Lamentei muito que isso também não tenha dado em nada. Mas no outono de 1999 lancei meu romance "O Chão Que Ela Pisa", em que o mito de Orfeu aparece num relato situado no mundo do rock. Orfeu é o mito fundamental dos cantores e escritores -segundo os gregos, era o melhor cantor e o melhor poeta-, e foi essa história que acabou por tornar possível a colaboração que estávamos estudando. Como tantas coisas boas, aconteceu sem ser planejada. Enviei a Bono e ao empresário do U2, Paul McGuinness, cópias escritas à máquina do livro antes de sua publicação, com a esperança de que me dissessem se estava bom ou não. Bono confessou, mais tarde, que estivera muito preocupado por mim, convencido de que eu tinha me proposto uma tarefa impossível, e que começou a ler o livro como "policial", ou seja, para me proteger contra meus erros. Por sorte, o livro passou no teste. No relato, aparece a letra daquilo que Bono chamou de "a canção que dá título" ao livro, uma elegia triste escrita pelo principal personagem masculino sobre a mulher que amava e que tinha sido tragada num terremoto. Era o lamento de um Orfeu contemporâneo por ter perdido sua Eurídice.

A imprecisa fronteira
Bono ligou para mim. "Escrevi esta melodia ["The Ground beneath Her Feet"] para acompanhar sua letra, e talvez seja uma das melhores coisas que já fiz." Fiquei espantado. Uma das imagens mais importantes do livro é a da fronteira imprecisa entre o mundo da imaginação e o mundo em que vivemos. E não é que eu tinha à minha frente uma canção imaginária que tinha atravessado essa fronteira?! Fui ouvi-la na casa de McGuinness, perto de Dublin. Bono me chamou de lado e me levou a seu carro para ouvirmos o CD demo. Esperou ter certeza de que eu gostara -e gostei desde o primeiro instante- para entrar na casa novamente, para que as outras pessoas a ouvissem.
Depois disso não tivemos mais muita "colaboração" propriamente dita. Houve uma prolongada sobremesa durante a qual Daniel Lanois, que produziu a canção, trouxe sua guitarra e se sentou comigo para juntar a estrutura da letra. Tivemos um Dia das Palavras Perdidas, quando recebi um telefonema urgente de uma mulher da Principle Management, os agentes encarregados do U2. "Eles estão no estúdio e não estão achando a letra. Será que o senhor poderia mandá-la por fax?" Fora isso, foi tudo tranquilo até que terminaram a canção. Eu não esperava por isso, mas a verdade é que sinto orgulho dela. Para o U2, também, era novidade. Normalmente eles usavam apenas suas próprias letras e não costumam começar por elas -a letra geralmente fica para o fim. Apesar disso, não sei bem como, deu certo. Sugeri a eles, de brincadeira, que mudassem o nome do grupo para U2+1 ou, melhor ainda, para Me2, mas acho que eles já tinham ouvido todos os jogos de palavras que eram capazes de suportar. Festejamos com uma prolongada refeição ao ar livre em Killiney, na qual o cineasta Wim Wenders anunciou, surpreendentemente, que os artistas deviam deixar de fazer uso da ironia. "Neste momento é preciso falar com clareza", disse ele. "A comunicação deve ser direta e é preciso evitar tudo o que possa criar confusão. A ironia, no mundo do rock, adquiriu um significado especial." O que Wenders criticava era a afetação multimídia que o U2 tinha na fase de "Achtung Baby" e "Zooropa", que ao mesmo tempo abraçava e desmontava a mitologia e o aparato todo que cercam as estrelas de rock, o capitalismo e o poder, cujo símbolo era Bono encarnado em MacPhisto, com o rosto branco, uma roupa de lamê dourado e chifres de veludo vermelho. Naturalmente o U2 reagiu exagerando ainda mais essa atitude, levando-a longe demais, na turnê de "PopMart", que não foi tão bem recebida. Depois disso, parece ter seguido o conselho de Wenders: o novo disco e a turnê "Elevation" são sua consequência, um produto austero e impressionante.

As lágrimas de Jesse Helms
Eles apostaram muito com esse álbum e essa turnê. Se as coisas não tivessem dado certo, poderia ter sido o fim do U2. É claro que eles falaram dessa possibilidade, e o disco foi sendo adiado, em meio a muitas deliberações. Também houve outras atividades à margem -sobretudo por parte de Bono- que os atrasaram, mas, considerando-se que, entre elas, conseguiram que David Trimble e John Hume se apertassem as mãos num palco e levaram Jesse Helms -sim, Jesse Helms! (senador republicano norte-americano, um dos dois relatores da lei de embargo a Cuba 40 anos atrás)- As lágrimas quando obtiveram seu apoio para a campanha pelo cancelamento da dívida do Terceiro Mundo, não se pode dizer que tenham sido bobagens ou caprichos. Seja como for, "All That You Can't Leave Behind" acabou sendo um bom disco, uma renovação da força criadora e, como diz Bono, neste momento há uma grande corrente de boa vontade para com a banda. Neste ano eu já os vi em três ocasiões: no show "secreto", antes do início da turnê, que teve lugar no pequeno teatro Astoria, em Londres, e duas vezes nos Estados Unidos, em San Francisco e Anaheim. Eles deixaram os estádios imensos para tocar em locais um pouco menores, que parecem diminutos depois do gigantismo de seu passado recente. Eles foram despojando seus espetáculos de tudo o que seja supérfluo. Na realidade, seus shows agora consistem neles quatro, tocando seus instrumentos e cantando suas canções. Para uma pessoa de minha idade, que se recorda de quando o rock era sempre assim, a sensação que se tem é nostálgica e inovadora ao mesmo tempo. Na era dos grupos de meninos, que não têm instrumentos, mas coreografias (já sei que as Supremes também não tocavam guitarra -mas eram as Supremes, afinal), é estimulante ver um grande quarteto de adultos que fazem as coisas simples tão bem à comunicação direta, tal como disse Wim Wenders, dá bons resultados. Além disso, eles tocam minha canção.


Curiosidade: Salman Rushdie aparece no videoclipe da canção, em um dos quartos do Million Dollar Hotel.
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